PROVINCIANISMO, por José Francisco Botelho
Há um enigma no provincianismo. Em primeiro lugar, porque poucas pessoas saberiam defini-lo de forma precisa, assim no susto. Em segundo lugar, porque, apesar da indefinição, a ideia de provincianismo parece exercer um fascínio às vezes obsessivo sobre um grupo significativo e diversificado de indivíduos. De tempos em tempos, é possível vê-los por aí, apontando o provincianismo alheio, com certo orgulho de connoisseur; mas, se lhe perguntarmos o que querem dizer por “provincianismo”, é provável que caiam na tautologia: ser provinciano é fazer isto e aquilo, porque fazer isto e aquilo é ser provinciano. Vamos ver se conseguimos clarear um pouco o terreno, até para constatarmos quem é o verdadeiro provinciano nessa história.
Um velho e digno dicionário me diz o seguinte: provincianismo significa “mentalidade atrasada, mau gosto (do ponto de vista das cidades grandes)”. Vejam que coisa curiosa! Provinciano seria o representante de ideias ou estéticas tacanhas, segundo o habitante das cidades grandes. Não é bem essa, contudo, a opinião de Fernando Pessoa. Em O provincianismo português, ele atribui ao ethos provinciano três sintomas (pelo menos): “o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia”.
É realmente espantoso, pois os três sintomas parecem traços comuns do anti-provinciano brasileiro. Será que o caçador de provincianos é, de fato, o provinciano real? Hipótese macabra para alguns; porém, para mim, muito divertida.
(É sempre perigoso falar nesse assunto. Eça de Queirós denunciou o provincianismo português em várias de suas obras; mas Fernando Pessoa, no texto homônimo, cita Eça de Queirós como exemplo do… provincianismo português. Talvez alguém um dia venha chamar Pessoa de proviciano. Ou talvez o provinciano seja eu. Que ninguém tenha pudores em assentir.)
O Rio Grande do Sul é um interessante caso de estudo na ciência do provincianismo. Haverá algum porto-alegrense que considere o interior do Estado provinciano em relação à capital? Ah, sim, haverá algum! Esse mesmo porto-alegrense, contudo, em geral considera Porto Alegre provinciana em relação a São Paulo. E sobre São Paulo, nada direi, exceto o seguinte: seja qual for a definição de provinciano, decerto é tão possível sê-lo na Vila Madalena quanto em Dom Pedrito.
Mas, antes que me acusem de indefinição, tentarei explicar o que eu mesmo acho do assunto.
Em primeiro lugar: o verdadeiro provinciano acredita numa misteriosa hierarquia ontológica, uma pirâmide de patamares cujo pico se perde nas nuvens, mas cuja base está muito próxima dele — fato que o irrita e talvez o assuste. O verdadeiro provinciano deseja com fervor estar lá no topo da cadeia; mas deseja-o exatamente porque desconfia não estar. Aliás: um traço elementar do caçador de provincianos é o temor de ser considerado, ele próprio, provinciano; e isso o delata.
Em segundo lugar, o argumento mais importante: o provincianismo que me interessa enquanto objeto de estudo não é outra coisa senão uma forma de filistinismo. É a falta de curiosidade diante da estranheza do mundo, combinada a uma tendência a aceitar as ideias convencionais de determinado tempo, lugar ou grupo; tudo isso misturado a certo gosto por avaliar as coisas (a vida, as pessoas, a arte) de forma meramente utilitária.
O que equivale a dizer — com o perdão de Decartes — que o provincianismo é uma das qualidades mais bem distribuídas entre os seres humanos.
Eis, por fim, outro elemento peculiar no enigma do provincianismo: se o compreendemos de certa maneira (digamos, a maneira que acabo de descrever), o termo torna-se misteriosamente inócuo ou inadequado. Percebemos que, ao falar de provincianismo, estávamos na verdade falando de alguma outra coisa.
Para acabar, devo voltar por um instante ao texto de Fernando Pessoa, pois parece que deixei alguma coisa quicando lá atrás. Se alguma atenta mente leitora cogitar por um instante que eu seja inimigo dos grandes meios, das grandes cidades, do progresso e da modernidade, vou lhe rogar (por favor!) que não perca a capacidade de ironia.
José Francisco Botelho nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Entre suas obras, estão dois aclamados volumes de contos que misturam a ficção histórica, o fantástico e a especulação filosófica: A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) e Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) — esse último, grande vencedor do prêmio Açorianos de 2019 e também ganhador do prêmio Minuano na categoria Conto, no mesmo ano. Botelho é especialista em tradução de poesia, e suas versões de obras medievais e renascentistas são objeto de estudo internacional. Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de “Contos da Cantuária” (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, em 2017. Também traduziu “Júlio César”, de Shakespeare, assim como obras de Bram Stoker, Arthur Conan Doyle e vários outros autores, para diversas editoras brasileiras. Botelho vive atualmente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Brilhante, como sempre, encanta a todos com sua cultura, espantosa para um quarentão recém saído dos cheiros. Parabéns, querido amigo! Abraço
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