SINAPSE, por Catia Schmaedecke

Do alto do penhasco Ivan podia vislumbrar a linha tênue no horizonte, uma divisão translúcida entre o céu e o mar que ali se igualava à sua estatura. Nas primeiras horas da manhã o vento soprava favorável e arrepiava-o da cabeça aos pés, trazendo consigo recordações da infância. A ideia surgira de repente à época do colégio, como solução para todos os seus problemas, enquanto a acne espalhava-se incontrolável por sua face adolescente. Então, ele passara a ansiar por esse momento que, durante todos esses anos, a vida se encarregara de fazê-lo postergar em tentativas constantes de demovê-lo por completo.

Nos últimos tempos certa confusão entre a realidade e a imaginação torturava-o quase todos os dias, em graus que variavam do leve ao preocupante quando, então, perdia até mesmo as chaves de casa. A capacidade de avaliação, outrora de uma precisão cirúrgica, sobre os acontecimentos cotidianos, vinha se dissipando em ritmo assustador. De repente percebia o trabalho de uma vida inteira, e do qual sempre se orgulhara, perigosamente fadado à ruína. Aos sessenta anos tudo o que julgava possuir como parte íntegra do raciocínio, tornava-se algo cada vez mais incerto, desmantelando-se gradativamente como um gigantesco castelo de areia.

Há dois meses, na empresa onde trabalhara durante toda a sua vida, enquanto a chuva caía torrencial lá fora, era ele o palestrante motivacional do dia, para o grupo de novos funcionários. Tudo ia bem, como de costume, até o instante em que a sua fala, sem motivo aparente e de um modo que ele não sabia explicar, desorganizou-se involuntária, transformando o silêncio atento em um irreprimível desconforto entre os espectadores nas cadeiras do auditório. De súbito, a voz saiu aos borbotões, por alguns segundos as sílabas misturaram-se formando palavras incompreensíveis enquanto sentia que a sua mente tentava desesperada reorganizar o pensamento. Ele conseguira pigarrear e pedir desculpas após beber um pouco de água. Aqueles segundos intermináveis tinham sido cruciais para o que aconteceria a seguir. Sentira as pernas fraquejarem quando alguns se levantaram e encaminharam-se para a saída. Mesmo assim, procurou retomar o foco, mantendo-o com o máximo esforço até o último minuto. Quando terminou a explanação restavam seis pares de olhos na plateia. Da fileira do meio eles o observavam com uma névoa sobre suas cabeças, as pupilas eram um misto de interrogação e pesar. A compaixão daqueles rapazes rodopiou pelo ambiente, pendeu para os lados, virou-se para trás conferindo o vazio das últimas fileiras, até pairar atônita à sua frente. Então, acertou-o em cheio no peito. Ivan sentiu o baque fazendo-o cambalear duas vezes para o lado, antes de tombar sobre a madeira do tablado. Ainda conseguiu vislumbrá-los correndo em sua direção, e logo depois perdeu os sentidos. Acordou mais tarde na cama do hospital, com uma tremenda dor de cabeça. Aquilo tinha sido a gota d’água. Na semana seguinte tomara a decisão de deixar a dignidade recolher os objetos mais importantes de seu escritório, fechar a porta, e levá-lo embora da empresa impedindo-o a todo o instante de olhar para trás. A urgência em começar um tratamento tinha sido a desculpa perfeita para a solicitação da licença que ninguém ousara questionar.

Agora, lá embaixo, o som das ondas batendo no rochedo orquestrava o seu ato final. Ivan levantou a cabeça e inspirou. O frescor da maresia o fez sorrir com um misto de euforia e certo receio. Se algo desse errado viveria o resto de seus dias torturando-se em redemoinhos de arrependimento. Tinha plena consciência de que se isso acontecesse, jamais poderia refazer os cálculos e tentar outra vez, uma segunda chance estava fora de questão. Por um instante a nostalgia de algo jamais vivido antes o perturbou, mas sua intensidade não era suficiente para fazê-lo desistir. A vista lá de cima era tudo com o que sempre sonhara. Vislumbrou o sombreado de uma baleia nadando ao lado do filhote, viu golfinhos saltando juntos para fora da água. Aquele era um espetáculo único, majestoso, estreando para ele tal como tinha imaginado. Ali onde estava tornava-se desnecessário qualquer comprovação sobre a sua percepção da realidade.

Não havia mais tempo a perder, chegara a hora de agir. Em pouco tempo tudo estaria terminado.

Prendeu a respiração, e tomou impulso. Correu o mais rápido que pôde em direção ao precipício. No trajeto gritou. O som gutural representava o apogeu de todas as suas conquistas. Libertava-se, em definitivo, ao constatar outra vida com os braços abertos para recebê-lo. Não voltaria nunca mais. Sem explicações. Sem lamentos. Sem adeus. 

Levou apenas alguns minutos até que ele se visse soltando os cintos de segurança e retirando o capacete com o coração aos pulos. A felicidade o agarrara de jeito, fazendo-o tremer da cabeça aos pés. Se houvesse a possibilidade de nos próximos dias a memória traí-lo, apagando em definitivo os últimos acontecimentos, o registro estava garantido. Correu para a câmera filmadora escamoteada sob alguns galhos e folhas, em meio às rochas na praia. Nada poderia usurpar-lhe a satisfação do sonho realizado.    

Ivan se deitou na areia com as mãos atrás da cabeça, ao lado da asa delta. Não era mais o mesmo homem.

Já podia, enfim, morrer em paz.

Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance “A Casa da Grande Colina”. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.

FICÇÃO

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