TERRA SEM MALES, por Dilan Camargo
Do inédito “Uma escada de areia até o céu”, de Dilan Camargo,
um dos contos que integra a coletânea que terá lançamento no dia 06 de novembro,
na Feira do Livro de Porto Alegre. O livro traz uma seleção de contos
que se equilibram num delicado trapézio no qual trafegam naturalmente imagens de um futuro em que a natureza e a técnica humana se debatem de modo muito peculiar, também as aflições do contista (aqui mais poeta que contista) com os dramas do tempo presente e ainda lampejos do passado, que o autor faz reviver com uma prosa muito afetiva, como lhe é característico.
“Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios.
Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.”
Manoel de Barros
Nesta manhã, as borboletas não vieram. Talvez ainda estejam no seu terceiro estado. Não vieram também os pequenos pássaros. Não veio o colibri. Não parou no ar com seus músculos mais fortes do que os dos humanos, o ágil visitador de flores. Não vieram, mas virão, no dia.
A coruja me olha do escuro. Pia esconjuros. Não é ave da luz do dia. Não sou mais do tempo em que quando se ouvia um pio de coruja à noite tinha-se que tirar a roupa, virá-la do avesso e voltar a vesti-la. Não podemos arrancar as nossas peles e virá-las do avesso. Agora ainda é manhã.
Sei que embaixo da terra está adormecida a semente dos céus. Só depois que o grande silêncio recolher as vozes desesperadas é que poderei remexer a terra. Nesse tempo, em que conto os dias para o fim da peste, aprendi a ouvir os presságios, deixei as unhas crescidas para lavrar com as minhas próprias mãos a terra ressecada.
Tenho a lição aprendida nas insônias, os olhos crescidos para desenhar nas pupilas o vestígio desse invisível que nos contamina. O invisível não pode estar em todo lugar. Um dia não haverá mais nenhum lugar para esse invisível, seja vivo, semivivo ou vírus.
Quando vier o dia, cuspirei no chão o quanto for preciso. Misturarei a minha saliva com a argila disponível. Engenharei o barro de olaria. Terei que lembrar o meu molde. Quem eu era?
Depois, assobiarei e ajuntarei os ventos que atenderem ao meu chamado. Aspirarei os vácuos de ar para filtrá-los pelas narinas. Da sobra dos seus excessos extrairei um sopro. O sopro.
Ainda faltará o fogo.
Esperarei o velho mestiço chegar. Só ele conhece o caminho que leva ao Boqueirão, entre as coxilhas e as planícies aluviais de São Sepé. Lá, num rancho barreado, de chão batido, coberto por capim sapé, queima um pai-de-fogo, um tronco de angico sem espinhos. Sua casca é quase uma pele. Lá arde a chama crioula acesa nos tempos, o fogo sem fim e sem começo, mantido e atiçado para que permaneça vivo. Esse fogo transfere o seu calor e energia para as partículas elementares do espírito, que se movem sem cessar, em desalinho, em susto, em angústia, em dor.
Até lá, de a cavalo, são 7 dias, e de a pé, são 70. Iremos de a pé.
O sinal para sair da casa, abrir a porteira e encontrar o peão mestiço, será o canto do urutau, que se parece a um mugido. Só cantará uma vez. O velho estará me esperando debaixo de um umbu. Será a vez de sair deste confim. Ele será o meu guia. Levaremos apenas um frasco com água e uns pedaços de rapadura.
Na noite passada o urutau cantou. Chegou o dia. Então seguiremos.
Acompanho a sua figura como uma sombra. Ele não fala. Bafora o seu cigarro de fumo enrolado em palha. Sobre o seu chapéu de aba larga vai pousada a borboleta, inseto miraculoso de quatro vidas. Ela degusta com os pés o sabor de suor do seu chapéu curtido. Sobre os ombros do velho, quase imóvel, voa o colibri, para frente e para trás, único par de asas que pratica esse prodígio. Às vezes, fixa o seu bico fino num botão da camisa do velho. A coruja sobrevoa, mas receia os olhos mais sábios do mestiço. À noite, pia de longe, dos buracos e dos postes.
As estradas estão despovoadas. Entre as colinas e coxilhas, há valas de canhadas pedregosas e com declives que nos obrigam a cuidar os passos. O quero-quero abandonou o seu posto de sentinela. Há silêncio entre os galhos de maricás. Os joões-de-barro já não fazem o seu recreio de algazarra passarinheira. Não vimos nenhum bem-te-vi. Não há gado nos pastos. Os raros cavalos que sobreviveram trocam orelhas em algum fundão, decifrando os ventos. Eles não saem ao campo porque se negam a passar em lugares onde estejam sepultados outros cavalos. Há sinais de covas por toda uma extensão do pampa.
No último dia de caminhada, avistamos o rancho. Primeiro a fumaça, e, mais perto, o contorno da cobertura de capim. É lá.
Entramos. No centro, o fogo de chão. As chamas espremem os troncos e galhos que chiam e vertem o líquido da seiva. Olhamos em redor e vimos encostados nas paredes figuras espectrais. As chamas queimam o ar onde se projetam imagens bruxuleantes num vago espaço de sombras e cheiro de gente. O fogo alumia as imagens de crianças, jovens, adultos, velhos, sem revelar a cor das suas peles e nem o contorno dos seus olhos.
Eles se aproximam de mim e passam as suas mãos embarradas sobre o meu rosto, os meus ombros, os meus braços, sobre todo meu corpo. Levam-me para perto do fogo e se afastam. Sinto o calor das chamas. Estou dentro do meu molde. Lembro-me de quem eu era. Barro cozido.
Com a cabeça adornada por uma coroa de plumas coloridas, o velho pronuncia a fala sagrada. E começa a dançar. Todos acompanham a dança e repetem as suas palavras. Só ele conhece as Belas Palavras , as ñ’ë porä, aquelas que somente devem ser ditas aos deuses, herança mítica dos guarani. A sabedoria dos adornados, dos eleitos dos deuses, dos que buscavam a Terra sem Males. A terra que nenhuma pequenez altera, que de nenhum mal adoece, livre da natureza imperfeita do sangue e da carne.
Só ele conhece a labareda das Belas Palavras. Só ele a colhe com as mãos e a desdobra em milharais, mandiocais. Só essa chama cura. Só ela pode levar ao aguyje, ao estado de graça. Estou pronto.

Dilan Camargo nasceu em Itaqui (RS), passou a infância e juventude em Uruguaiana (RS), na fronteira com a Argentina. Quando jovem, com um grupo de amigos, criou e apresentou um programa de músicas e comentários na Rádio São Miguel, além de editar um jornal impresso, dirigidos ao público jovem, com artigos e notícias. A partir de então, decidiu se tornar escritor. Concluiu Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Mestrado em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalhou como professor, inclusive no ensino superior, e na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul como Assessor Superior. É fundador, primeiro presidente, ex-secretário-geral e sócio da Associação Gaúcha de Escritores. Foi Membro do Conselho Estadual de Cultura, eleito pela comunidade cultural em dois mandatos, tendo exercido os cargos de presidente, vice-presidente e secretário-geral. É membro da Associação Nacional de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil. Foi, por duas edições, jurado do Prêmio RGE/Governo do Estado de Cinema Gaúcho; e, em 2005, jurado do Prêmio Nacional de Contos Josué Guimarães. Como escritor, publicou diversos livros de poesia, poesia infantil e teatro, entre eles BrincRiar, Um caramelo amarelo camarada, e Com afeto e alfabeto. Os poemas aqui apresentados são de seu mais recente livro, A arte do medo, de 2019.