TRANSITORIEDADE, por Luiz-Olyntho Telles da Silva
Como as coisas deste mundo são de natureza
transitória e mortal, é evidente que todas,
em si próprias e fora de si próprias,
são geradoras de angústia ou de cansaço
e sujeitas a perigos infinitos.
(J. BOCCACCIO, Decameron,
1ª Novela, 1ª Jornada – Narrada por Pamfilo.)
Gosto das exposições de arte porque elas, de modo geral, exercem em mim uma função antialienação. As propostas dos artistas, quase sempre inovadoras, arrastam minha percepção para novos ângulos. É a vida mostrando sempre novas facetas.
O efeito da mostra de Marília Bianchini, ao expor o seu Elogio da transitoriedade, causou-me singelo efeito: levou-me a retomar antigas lembranças. Enquanto eu examinava o quadro escolhido por ela para representar a exposição no convite: uma bengala alçando voo, sustentada por quatro balões, impresso sobre um papel artesanal feito de fibra de bananeira, arroz e algodão, provisório como as metáforas pintadas, comecei, como se diz, a dar tratos à bola. Passageira, a vida do homem tem, na bengala, a terceira perna vaticinada a Édipo pela enigmática Esfinge, uma alegoria apropriada. Os balões de gás, transitórios como a própria vida e inflados como um ego narcista,[1] podiam ser lidos como aquela expressão latina, não raro aparecida em relógios de parede: Tempus fugit.
O tema me sensibilizara desde a leitura de um texto de Freud, escrito em 1915. Era o começo da Primeira Guerra Mundial e o Pai da Psicanálise a comentava, desde a transitoriedade do encanto da natureza, no verão, vencido pelos rigores do inverno, até o destroçar das realizações da civilização. Freud se assegurava na esperança de que, assim como, vencido um período normal de luto, nossa libido fica livre para um novo investimento, também isto aconteceria em relação às perdas causadas pela guerra: depois, reconstruir-se-ia tudo, em terreno ainda mais firme. Quando o li, no final dos anos 60, o ideal do Mestre me comoveu. Acho que por isso fiquei tão tocado com o livro de Alvin Toffler: O choque do futuro, surgido poucos anos depois.
Para dizer da crescente velocidade do futuro caindo sobre nós, depois de A morte da permanência, Tofler, no capítulo seguinte, abordava A transitoriedade. A partir de uma observação sobre as constantes atualizações da bonequinha Barbie, a mais vendida de todas, em todo o mundo, em todos os tempos, o autor nos alertava: os relacionamentos do homem com as coisas estão se tornando cada vez mais temporários, efêmeros. A boneca de trapo, companheira de sempre de tantas amiguinhas, já não teria mais lugar. A estabilidade aprendida na infância, em casa, desmoronava. As profissões tornavam-se passageiras, umas dando lugar a outras. Os valores mudavam!
Talvez Freud estivesse, então, demasiadamente próximo da guerra para avaliar seus efeitos. As palavras cautelosas de Mao Tsé-Tung, quando lhe perguntaram, duzentos anos depois da Revolução Francesa, sobre seus efeitos, ainda se fazem ouvir: – É muito cedo para uma avaliação precisa! E recém estamos completando cem anos da Primeira Grande Guerra, sem esquecer que logo depois tivemos uma Segunda, ainda mais devastadora.
Nasci quase ao final dessa Segunda Guerra Mundial, longe do palco, mas não de seus efeitos. Lembro-me da perseguição aos emigrantes que, recém chegados da Europa, não conseguiam falar português. E na escola, onde ainda valiam os valores de antes, aprendia, então, a importância da casa alicerçada na rocha; mas, agora, vejo proliferarem as construções na areia. Na época, era preciso estudar muito, até para alcançar uma nota média, e hoje tendem a aprovar os alunos, mesmo sem aprender, gerando uma população de analfabetos funcionais.
Estava nisso, e, devaneando com os coloridos balões, choquei-me com a lembrança do padre Aderlir Antônio de Carli. Não faz muito, ficou conhecido por sua autodenominação de Padre Voador. Sustentado por mil balões de hélio, fez-se aos ares, desde o porto de Paranaguá, contra a opinião de todos os seus paroquianos, contra o tempo encoberto, ventoso e prometendo chuva, e até contra a força do significante.[2] Nada o dissuadiu de seu voo em direção ao interland. Suas últimas palavras, pelo celular de bateria fraca, três minutos e poucos segundos depois de ser levado pelos ares, já perdido entre os úmidos nimbos, foi um pedido de ajuda para operar seu GPS. O drama sobreveio em meio a uma tormenta, com o padre possivelmente alucinando, sobre os terríveis trovões, as notas wagnerianas do Holandês Voador, cuja visão é sempre trágica. Dias depois, um pedaço de seu corpo, ainda preso aos cordames de um paraquedas, foi encontrado no litoral do Rio de Janeiro, levado pela mesma corrente fria que não raro arrebata pinguins do polo sul. Vida, projeto e viagem, todos rápidos. Um absoluto despreparo.
Nós já sabemos, pelo menos desde quatrocentos anos antes de Cristo, por Hipócrates, de um contraponto: se a vida é breve, a arte é longa; mais longa que o sonho de voar. Dédalo – artista mítico de diversas artes –, sabia: para voar, é preciso muito cuidado! Ícaro não o considerou e caiu no mar. Leonardo da Vinci, na Idade Média, gastou muito de seu precioso tempo projetando uma estrutura apropriada para voejar; se não voou, legou-nos princípios importantes a serem considerados na sustentação do mais pesado que o ar. O Padre Bartolomeu de Gusmão, este sim um estudioso da arte do voo, o legítimo Padre Voador, subiu aos ares, no princípio do século XVIII, o primeiro aeróstato, a sua Passarola. Dois séculos depois, Santos Dumont voou.
Os balões haviam sido o sonho do padre Carli, desde a juventude. Seu interesse, porém, recaíra sempre no aspecto lúdico. Suas tentativas de voar fracassaram quase todas, com exceção da última, um mês antes da fatídica experiência, quando disse ter superado os 3.900m do americano Ken Couch, recorde de altura nessa categoria de voo. Os 5.337 metros, supostamente ascendidos por Carli, não mereceram, contudo, o crédito do Guinness Book. Marcio Lichtnow, instrutor de parapente, havia-o expulsado de sua escola, por indisciplina e exibicionismo, classificando-o como um pretensioso que pensava saber tudo, mais parecendo um playboy; desgostava-o, sobremaneira, a teoria, e não aprendeu nada de meteorologia. Incensado por seu movimento em defesa dos moradores de rua, pretendia, com seu voo temerário, angariar dinheiro para prosseguir com seus projetos sociais, mas, como um novo Ícaro, agiu sem ouvir a orientação de seus predecessores.
Aderlir de Carli foi uma vítima, pelo menos em parte, destes tempos em que só o dinheiro parece ser o remédio para todos os males. O direito ao consumo é o equivalente, hoje, a um tíquete de ingresso ao paraíso, e quase esquecemos que todo homem é mortal. Desde o advento da Psicanálise, Freud nos alertara desta humana tendência: no inconsciente ninguém acredita na própria morte! No lugar do reconhecimento dessa verdade, desconfiamos é do homem. Por isso temos de fazer um constante esforço para valorizar o fugaz instante da vida, dando-lhe uma transcendência. O Vaticano, lembremos, havia tomado para si esse papel, mas desde o abandono da Coroação Papal, substituída pela Inauguração do Pontificado, após a elevação de Paulo VI, em 1963 – quatro anos antes de Aderlir vir ao mundo –, deixaram de lado as três paradas rituais, durante a procissão, quando o mestre de cerimônias recitava, com todas as letras, três vezes seguidas, enquanto queimava uma mecha de estopa: Sancte Pater, sic transit gloria mundi (Santo Padre, assim passa a glória do mundo). O que parece superficial, muitas vezes não o é! Ao alertar o Papa, alertava-nos também. Se a vida e as honras terrenas são transitórias, algumas o são mais que as outras. O gesto de Aderlir de Carli, digno apenas de ser candidato ao ominoso prêmio Darwin, está hoje praticamente esquecido, enquanto a dedicação de Bartolomeu de Gusmão, inventor precoce, se não recebeu nenhum prêmio, nunca foi olvidada; seus estudos e invenções prestaram um grande serviço à humanidade.
Se tudo é transitório, temos de deduzir da transitoriedade sua permanência. O aforismo de Hipócrates, por exemplo, continua vivo! E se a arte transcende os tempos, podemos manter a esperança de ver o sonho freudiano realizado: passados os efeitos devastadores das doloridas perdas da humanidade, cumprido um luto, talvez ainda por duzentos anos, mesmo já não sendo os mesmos, mais maduros, valorizando a educação primária, poderemos voltar a uma relação estável com os objetos e, inspirados em Thiago de Mello, conseguiremos confiar no homem, como um menino confia em outro menino.
Notas
[1] A grafia da palavra narcista deve-se a uma concordância com S. Freud que não gostava da partícula is, tendo-a suprimido tanto de narzissismus como de seu próprio nome, Sigismund.
[2] O nome do porto de onde partiu – Paranaguá –, pode ser escandido em para-n’-água, tal como de fato lhe aconteceu.
8 de julho de 2013.
Publicado em
Iluminura Turca e outras crônicas
Porto Alegre: EDA, 2015.
Luiz-Olyntho Telles da Silva (Marcelino Ramos, 1943) é psicanalista e escritor. Autor – na área da literatura – de Incidentes em um ano bissexto, Iluminura turca e outras crônicas, Um elefante em Albany Street e Os embaixadores. E-mail: lots@uol.com.br

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