TUDO MUITO RÁPIDO, por Fabrício Silveira

Fabiano Evangelista inclinou o corpo sobre a mesa e fez um gesto ao qual a esposa, sentada ao seu lado, já estava habituada. Lucas, na frente dos dois, levou um copo de cerveja artesanal à boca e concluiu que devia se aproximar.

“Vocês estão vendo aquele cara que está entrando ali?”, Fabiano alterou o tom de voz como se fosse, do nada, entregar um segredo.

Lucas e Raíssa, a esposa, ouviram o cochicho. Foram discretos quando olharam na direção em que Fabiano havia apontado, à direita, em slow motion, com o pescoço.

“Sim. O que é que tem?”, Lucas perguntou.

“Foi meu aluno uns vinte anos atrás”, Fabiano levou uma das mãos à boca, precavido, tomando cuidados táticos.

“Ih! Lá vem bomba”, Raíssa reagiu.

Fabiano reconheceu a expressão no rosto dela: uma combustão de ceticismo e zombaria, sua incredulidade toda própria.

“Pedro Enrique Zamorano é o nome dele”, continuou. “Enrique sem agá. Um nome espanhol, meio pomposo”, acelerou um pouco, “… era um baita skatista. Chegava sempre de skate na sala de aula”.

“Enrique sem agá? E quando é que foi isso?”, a esposa quis saber.

“Era minha primeira turma. A segunda, talvez. Dois mil… Dois mil e um…”

“Mas ele não te reconheceu?”, Raíssa fez um estalido molhado com a língua, prestes a explodir numa sequência de risos e insinuações.

“Não sei. Fez que não reconheceu, pelo menos”, Fabiano arregalou os olhos, balançou a cabeça e exibiu, em simultâneo, as mãos vazias. “Também não entendi”, por um segundo emudeceu. “A mulher que está com ele é a Lu”, apontou o nariz na direção dela, uma trintona bonita, em trajes casuais e muito justos, com o corte de cabelo curto, a cor da pele e o charme da Halle Berry. “Começaram a namorar naquela época. Estão juntos até hoje. Estão vendo os outros dois? São os filhos que tiveram”.

Pedro Enrique Zamorano entrara no bar empurrando os ombros de um menino vestindo uma camiseta do Grêmio. Dava-lhe tapinhas no topo da cabeça, safanões convertidos em afagos na mesma hora. Foi tudo muito rápido, mas Fabiano pôde acompanhar a cena desde o início. Logo atrás vinha Luciana – “Lu, a louca”, ele se lembrou como a chamavam –, exuberante, de mãos dadas com uma jovem adolescente.

Quando Pedro enxergou o ex-professor numa das mesas, na companhia de outras duas pessoas, virou-se e apontou para o lado, instruindo a família. Garantiu que se acomodassem, os quatro, próximo à janela, num local reservado, fora da zona de turbulências do bar. Chamaram o garçom. Pedro Enrique Zamorano sentou-se de costas para Fabiano Evangelista.

“Gordo daquele jeito?”, Lucas abriu os braços, num sinal discreto de espanto. Zamorano, de fato, havia ganhado peso.

“Hoje o cara deve ter uns trinta e oito anos. Não é mais um piá, né, Lucas”, Evangelista colocou a máxima clareza em cada sílaba. Deu especial entonação àquele “né, Lucas”. “Mas, sim… Aquele gorducho ali foi um baita skatista. Eu não cheguei a ver, mas dizem que ele também surfava. Dá pra acreditar?”

Quase ergueram os copos para fazer um brinde. Quase gargalharam os dois.

“Mas qual é o problema?”, Raíssa se apressou em perguntar. “Então é só isso, seu Evangelista? Quais são, afinal de contas, as razões de tanto alarde?”

“Óbvio que não, dona Raíssa”, Fabiano tomou a frente outra vez. “Os dois formaram o casal mais junkie que eu já conheci”, ele disse. “Todo mundo ouvia falar deles. O Pedro chegava, às vezes, completamente chapado nas minhas aulas”.

“Até aí tudo bem, né, professor…”, Lucas fingiu incomodar-se, “quem é que não fuma?”

“Falo de coisa mais pesada, Lucas. Tipo Breaking Bad. Muito ácido, comprimido e pó direto, uns químicos fudidos…”, Fabiano encheu os três copos de cerveja disponíveis sobre a mesa e reparou que a família Zamorano examinava o cardápio. “O problema é que eles não pararam quando ela ficou grávida”, deslizou a palma da mão esquerda, de cima para baixo, ao longo do rosto.

“Aí pesa mesmo”, Raíssa se pronunciou. “Tipo Courtney Love e Kurt Cobain?”

“Pois é… Tipo Courtney Love e Kurt Cobain. Daí o apelido: Lu, a louca”, Evangelista repetiu. “Lembro que os alunos falavam. Muito mais entre eles, claro. Até os professores conversavam a respeito, à boca pequena”, bebeu um gole de cerveja. A espuma da bebida lhe marcou o bigode por uma curtíssima fração de tempo. “Por sorte, a filha nasceu perfeita, sem problema nenhum. Uma criança linda e saudável, depois eu soube. É aquela menina ali, eu acho. É a primeira vez que a vejo”.

Houve um respiro coletivo. Uma evidente sensação de alívio.

“Mas como a menina nasceu bem…”, Evangelista corrigiu o tom e deu severidade à expressão que fez no rosto, “eles continuaram mandando ver na loucura, dia após dia. Com filha pequena e tudo. Aí sim… Tinha gente querendo interferir, chamar a polícia, culpar os avós da criança. Queriam contratar até uma assistente social!”

“Puta merda!”, Lucas não se conteve.

“E sabem o que aconteceu depois disso?” Haviam chegado numa encruzilhada decisiva. Evangelista sequer precisaria enfatizá-la. “A Lu engravidou de novo…”, ele disse.

“Ah, não!”, Lucas e Raíssa responderam, os dois juntos, como um coral improvisado.

“E mantiveram a mesma rotina. O segundo filho é aquele menino ali, abraçando-se à irmã. Só pode ser. Não são bonitos?”

“São bonitos, sim. Nem parecem pais e filhos”, Raíssa conferiu as horas no relógio de pulso e reacomodou-se na cadeira para observá-los melhor. “Que sorte, hein?”, ela acrescentou.

“É bem isso”, Lucas consentiu. “É quase um milagre”.

“Mas a história não termina nesse ponto, meus queridos”, Fabiano tomou fôlego. “Há muitos outros detalhes. Dizia-se, na época, que eles tinham brigado feio com as famílias. Vinham no maior quebra-pau desde o início do namoro. Os pais, de um lado e de outro, não aprovavam, de jeito nenhum, o relacionamento. Mesmo assim a Lu e o Pedro insistiram”.

Lucas, Fabiano e Raíssa mal se deram conta de que o bar, naquele horário, já estava quase cheio. Várias mesas ao redor haviam sido ocupadas.

“Assim que a menina nasceu, os coroas acreditaram que eles iriam baixar a bola e sossegar um pouco, amadurecer, tomar um chá de responsabilidade”, Evangelista puxou a franja para trás. “Um pouco que fosse”, franziu a testa, lamentando-se.

“Tudo seguiu igual então? O que foi que eles tomaram? Tomaram chá de cogumelo?”, Lucas tentou descontrair.

“Não seria tão ruim…”, Fabiano seguiu no fluxo. “Dizem que a briga familiar só engrossava, semana após semana”, fez uma pausa. “Eles foram morar com uns amigos numa república. Depois com outros. Passavam temporadas morando de favor, sem endereço certo. Criavam a filha pequena e rolavam, na parceria, a vida lôca”.

“Bah! Mas isso não é vida!”, Raíssa se mostrava agora mais aflita.

“Os coroas estavam pirados. Vocês não imaginam. Queriam conviver com a neta. E quando o segundo filho nasceu, o Pedro e a Lu sumiram de vez. Foram morar numa comunidade hippie em Santa Catarina”, Fabiano parecia concentrado por inteiro naquilo que narrava. “Até o dia em que os pais do Pedro descobriram: eles estavam numa praia, numa comuna alternativa e autossustentável, militantes do amor livre. Dizem que o coroa do Pedro enlouqueceu – mas isso eu não sei direito –, ficou puto e resolveu buscá-los à força, caso fosse necessário. Ele havia entrado na Justiça, uns meses antes, pedindo a guarda das crianças e aquilo tudo, para ele, foi o que bastou. O velho saiu de carro, transtornado, assim que descobriu o paradeiro dos netos. Era o final de um verão. Não me lembro em que ano foi. E não é que se acidentou, no meio do caminho? Bateu num caminhão de carga e morreu na hora. O corpo ficou irreconhecível”, Fabiano silenciou.

Ninguém falou mais nada.

Zamorano, à distância de três metros, encheu um copo de cerveja. Os filhos, como dois corredores cruzando juntos a linha de chegada, terminaram o primeiro prato. Luciana se retorcia dando risadas, divertindo-os: escondia talheres e guardanapos, fingia se movimentar embaixo d’água. Imitava os braços de um polvo no jantar da família.

Fabrício Silveira é professor universitário. Dentre outros, é autor dos livros Rupturas Instáveis. Entrar e sair da música pop, indicado aos prêmios AGES Livro do Ano 2014, na categoria Não-Ficção, e Açorianos de Literatura 2013, na categoria Ensaio de Literatura e Humanidades, e Gigante Figura, sua estreia na escrita de ficção, indicado ao Prêmio AGES Livro do Ano 2019, na categoria Especial. É egresso da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil na PUCRS. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral – bolsa PNPD Capes – junto ao PPPGCom da UFRGS. Contato: fabriciosilveira@terra.com.br

FICÇÃO

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