VÓ JANDIRA, por Cátia Simon

O conto integra o livro “Rastros de Estrela”,
lançado em 2022 pela Território das Artes.

Sei de muita coisa dita e não dita. Sou tão antiga, do tempo em que isso aqui estava longe de ser cidade ainda, era vila e se chamava Vila da Figueira.  Sabia disso? O porquê do foguetório de ontem? É claro que sei.  Sim, minha filha, eu sei que todo mundo me conhece pela leitura da sorte e aconselhamentos que dou. Sou eu mesma, a Vó Jandira, filha de índia com pelo duro. Olha pra mim, tá vendo? Tá na minha cara a marca deles. Percebe? Mas tu quer saber do foguetório ou da tua sina? Veio fugida do Rincão só pra se consultar comigo? Então vou caprichar pra não perder a viagem. Olha, filha, já vivi muito pra saber e dizer que quando a mãe do pretendente não quer, não tem Cristo que faça o casório sair.  Tu já dormiu com ele? Fala a verdade pra vó, não adianta mentir porque descubro tudo aqui na brasa acesa. A velha pegou vocês dois? Bah, então não vai ser fácil, talvez com alguma mandinga, mas das bem fortes, das boas, talvez.  Eu sei que os tempos são outros, mas quando as pessoas querem achar motivo, elas acham… E essa daí é ruim que nem cobra cascavel. Tu foi logo se engraçar com gente de sangue ruim. Desculpa, mas eu falo mesmo.

Como que eu sei? Ah, depois te conto o que ela aprontou com a neta da Jurema. Eu queria era soltar um foguetório no dia que essa daí morrer, ela e toda a laia dela. Ontem soltaram foguete porque conseguiram despachar o sargento, mas ele que tava certo em proibir baile nos clubes. Viu o que aconteceu depois do baile, hoje cedo? Essa é notícia fresca, não deu tempo de se espalhar pelos ônibus. Se tivessem seguido a ordem do sargento, o pobre vivente ainda estava vivo. O que ele tinha que ver que um parente tinha matado o pai do outro. Sobrou pro infeliz. É, filha, essa vida é uma rodilha de cobras, escapa de uma e cai no bote de outra. Coitado do rapaz, pagou pelos outros. E o assassino não podia ter esperado passar a quarta-feira de cinzas, tinha que pegar o outro assim, desprevenido, pelas costas? Se o sargento era adivinha? Ahahahaha! Tu é engraçada.  Claro que não, mas contando apenas com dois cabos tinha mesmo que proibir baile de carnaval. E conseguiu o feito por quase oito anos. Ainda lembro,  ele mal tinha chegado aqui e já havia recebido a prova da maldade e do fingimento desse povo. Hum, vai dizer que já não falaram mal do sargento pra ti? Aqui falam mal das pessoas direitas que são boas, mas não têm bens e bem dos que têm dinheiro, mas não prestam. Vê se tem fundamento dizer que esses são de família de bem?

É, o coitado foi apartar dois borrachos e no puxa-de-lá-puxa-de-cá acabou enfiando a faca de leve num deles, que era filho de um grandão da cidade. Foi um bafafá e tanto, quase que o novato não esquenta o banco. Como que se livrou da encrenca? Um médico recém-chegado da capital, não tinha rabo preso com ninguém, testemunhou a favor do sargento, disse que o ferimento tinha aberto mais por que o dito estava tão mamado que a força para vomitar aumentou o buraco. É, filha, ainda tem gente boa nesse mundão de Deus, até por aqui nessa terra esquecida. Se o médico ainda está por aqui? Tá, mas comprou uma briga danada com essa gente poderosa. Ele, que era separado e tinha casado no estrangeiro com uma polaca bem bonita e séria, nunca que pôde botar os pés em clube nenhum. Não podia, era a regra, só aceitavam casados no papel. Por isso que eu digo, comprar briga com essa gente tem que estar preparado pro rebote, eles não perdoam. Imagina, se não pouparam um médico vão poupar a gente que é pobre e com pouca instrução. Vai por mim, filha, antes que seja tarde, vai embora daqui. Essa terra não dá sorte pra ninguém. A terra daqui é vermelha de tanta injustiça e de sangue que já caiu nesse chão. Se o moço te quiser mesmo ele vai atrás, ah, vai.

Da neta da Jurema? Ah, pobrezinha. Quando a mãe desse daí descobriu que ela estava se engraçando com o filho mais velho, chamou a guria, se fez de amiga e aprontou um roubo plantado. A coitada ficou tão desesperada que se atirou num poço  e foi encontrada somente três dias depois do acontecido. O filho da bruxa foi embora e nunca mais deu as caras por aqui. A Jurema criava a guria que nem filha, a mãe tinha morrido no parto. Ela jura que ainda vai se vingar, mas não sei como, a pobre ficou meio aérea, com as ideias atrapalhadas. Toma isso daqui, filha. São dois pacotinhos de umas ervas que a vó prepara e aconselha o uso. O verde é pra acalmar os nervos e tomar a decisão certa, o vermelho é pra uma urgência; afasta tudo o que é tipo de bicho peçonhento sem deixar rastro. Eu sei que tu tem pouco dinheiro, não carece pagar a consulta. Essa eu dou de graça. Vai logo te encontrar com ele, faz surpresa, mas não fala que andou por aqui. Dá uma de sonsa como a mãe dele quando quer dar o bote e oferece pra bisca, sem que ele saiba, o chá. A visita tem que ser rápida. Não esquece que hoje ainda tem dois horários de ônibus, um  pra São  Borja e outro pra São Luís.

Cátia Castilho Simon é escritora, mestre em literatura brasileira e doutora em estudos da literatura/literaturas brasileira, portuguesa e luso-africanas, pela UFRGS. Recebeu o prêmio Vianna Mog em 2014, 1º lugar na categoria ensaio, da UBE/RJ pela publicação do livro Labirintos da Realidade – diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis.

Algumas publicações: Por que ler Clarice Lispector. Porto Alegre: Território das Artes, 2017. PSICOgrafadas – antologia de contos – várias autoras, Porto Alegre: Território das Artes, 2020.  PSICOgrafadas e-book. Porto Alegre: Território das Artes 2021. Todas Escrevemos – coletânea (várias autoras) – Fora da Asa (org) Porto Alegre, 2021. Identidades – coletânea. Karine Oliveira (org) Belo Horizonte: Editora Venas Abertas, 2021. Arca da Desconstrução – coletânea. Cátia Simon e Liana Timm (org). Porto Alegre: Território das Artes, 2021. O mundo ao redor (contos)– Coletânea. Cintia Moscovich (org). Porto Alegre: Class, 2021. Coletânea Enluaradas II – poesia. Org Marta Cortezão e Patrícia Cacau. SP: Savasti Editora, 2021.

FICÇÃO

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