3 sonetos de Álvaro Santi
Do livro inédito e em preparo Tons de tudo.
Soneto 46 (invernal)
No inverno, não conheço quem consiga
manter o bom humor na tarde escura.
Entre as ruínas da carne ou da utopia,
as lágrimas confundem-se com a chuva.
As folhas todas já caíram, secas:
sobre elas, nosso ânimo rasteja.
A noite é longa; a luz, escassa; o sol
não chega a confortar; os dedos doem,
enrijecidos pelo frio atroz.
Também a consciência dói um pouco,
por não poder mudar o seu entorno.
Limitam-se a oferecer – os que podem
– um agasalho ou prato de comida
para adiar a morte dos que não têm vida.
(Inverno 2022 – 2/2/2023)

Soneto 47 (das mãos)
Com minhas mãos de homem, faço tudo:
preparo e lavo a louça do jantar,
dirijo um ônibus lotado e empurro
a cadeira de rodas de meu pai.
Com as mesmas mãos, de habilidades poucas,
anoto ideias, pra depois lembrar;
recolho o lixo; ou visto um avental,
para transformar meu trabalho em coisas.
E ainda que pareçam, junto às tuas,
as minhas mãos sem jeito, ou mesmo brutas,
extraem um carinho do cansaço.
Em troca, podes bem me dar um abraço,
que é bem melhor que o mísero salário
que minhas mãos não poderão guardar.
(2/6/2019 – 8/6/2022)

Soneto 48 (do lado bom)
Dizem pra eu olhar os bons exemplos,
como o gesto daquele padeiro
distribuindo pães a dois mendigos.
Não tenho por que duvidar da bondade
de um ou da alegria dos outros.
Só não posso esquecer que os famintos
contam-se aos bilhões sobre este mundo,
embora haja alimento em quantidade
mais que suficiente para todos.
Diante disso, inócuas me parecem
as virtudes dessa caridade.
Mas vejo, sim, um lado bom em tudo
que fazem as mãos de homens e mulheres:
o poder de transformar a realidade.
(23/3/2021 – 9/5/2022)
Álvaro Santi (Lajeado – RS, 1964) Poeta e músico, lançou seis livros de poesia e o CD independente Trem da Utopia (2011). É Bacharel em Música e Mestre em Letras pela UFRGS e Especialista em Gestão e Política Cultural pela Universidade de Girona (Espanha) e Instituto Itaú Cultural. Técnico em Cultura na Prefeitura de Porto Alegre.
