4 poemas de ‘NARCISO SELVAGEM’, por Narlan Matos
Os poemas selecionados integram o livro Narciso Selvagem,
publicado em 2022 pela editora Penalux.
ode ao meu país
para Yannik
meu país nasce de repente assim
do verde sumo de meu jardim
das plantas deitadas na terra escura
fecundada pela chuva em mim
nasce de repente como sua bandeira
cheia de romances e ternuras − trigueira
por cima de tratados geográficos
por cima de países paralelos
niilista e doce como um marmelo
sinto tanta falta de meu país
onde não há nada mais belo!
aqui não cantam juritis e sabiás
estou no Hemisfério Norte
muito perto da aurora boreal
muito perto do farol da Nova Escócia
mesmo tudo sendo manhã
nesta clara manhã da Virgínia
há uma noite pousada sobre mim
feito um pássaro preto dissonante
pousado sobre meu ombro esquerdo
mesmo aqui na Chesapeake Bay
com suas meigas marolas calmas
− de que adianta este farol
se ele não me ilumina?
ao menos sou um deus cego
que pode ver o céu acima
estou calado como a Grécia ao sol
e cada folha verde lenta que cai
neste impecável e belo outono
é uma lágrima que choro por ti, meu país
choro tuas ruelas pútridas impossíveis
tuas cercas embandeiradas separando quintais
as crianças famélicas sem nome
no Shenandoah no Potomac no Mississippi
nestes rios tão distantes ainda busco
os meus rios daqueles dias felizes
eu menino na fazenda de meu pai
boiando nas águas serenas e negras
rio Preto olhando a abóbada celestial
e as altas copas da Floresta Atlântica
onde brincavam serafins querubins
com bandos de micos-leões-de-cara-dourada
a fragrância selvagem da natureza virgem
adentrando as narinas e inventando a alma
e as jiboias subiam lentas e pacientes
nos grossos cipós para falarem com Deus
e Ártemis dançava ao meu redor sorrindo
ah, rios que perdi para sempre, perdi perdizes
ah, quanta gente sucumbia na deslumbrante
Lagoa da Alegria e pescávamos acarás
e outros peixes magros que comíamos
contritos e famintos e contentes
como se fôssemos reis magos dos Orientes
à margem em fogueiras rupestres
e onde pela primeira vez vi um enorme
e belo pássaro preto que na verdade era azul
na copa de uma árvore muito alta
e ele era azul como o anil nos céus do Brasil
aos 15 anos de idade meu pai me levou
a conhecer as cidades históricas de Minas Gerais
ah, aqueles tempos bons de nunca mais!
mas além das cidades eu vi tudo: via o gado
via o leite via os currais a Via Láctea
vi as ladeiras da Inconfidência Mineira
e aprendi que o viajante se faz na viagem
vimos Ouro Preto Sabará e Mariana
e eu numa saga de descobrir qual era
a casa de Tomás Antônio Gonzaga
desiludido tirei uma foto ao léu com a casa
mais bela que julguei atrás de mim
e décadas depois fiquei sabendo que aquela
fora de fato a casa onde o poeta morara!
em Ouro Preto meu pai me levou para ver
o consultório de Joaquim José
da Silva Xavier, o Tiradentes
e depois naquelas igrejas rococós
as celestiais obras do homem que
esculpia até sem suas próprias mãos:
o Aleijadinho, o divino arquiteto na Terra
saudades daquela terra vermelha de meu país
daquele barro negro e pegajoso
− era esse o espelho em que eu me via
eu menino brincando de moldar bonecos
e a vida naquelas velhas olarias
fábricas abandonadas nas mãos do vento
o subúrbio operário os pastos abertos
e quem diria que aquele menino de província
o destino para tão longe levaria?
ah, o destino era um peão atirado na terra
girando no chão de barro preto
− como meu filho agora brinca no quintal
a molecada gritando e vagabundando
por entre aqueles coloridos varais
− e onde está tudo agora? onde? −
onde roubávamos frutas-do-conde
pinhas araçás mamões vermelhos auroras
e à noite fazíamos serenatas sob os véus
brancos daqueles luares perdidos
saudades eternas daquelas meninas
dos carros de bois onde eu passeava
na infância… e um velho negro
com porte de rei me ensinava a vida
me ensinava tanto do que não sei
ah, como eu queria agora voltar
para onde já não se volta
como eu queria retornar àquele belo
e antigo peitoril de fazenda e gritar:
não há nenhum estado que valha o Brasil!
um dia viajando de ônibus pelo meu país
vi a serra de Petrópolis lá embaixo
no descambado da imensidão
com a manhã nascendo por cima
e nimbos se escorrendo pelos cumes
pela vegetação tão verdonha! vi velhos
casarões do tempo do Império
e imaginei outras épocas com carruagens
e belas damas da corte imperial
e pensei em dom Pedro II e no respeito
a admiração que ganhara pelo mundo
pensei na princesa Isabel
a mulher que desafiara o Brasil senhorial cruel
e decretara a lei da mulher, a Lei Áurea
e tive tanto orgulho de ser brasileiro como eles
quando eu tinha 16 anos meu pai
me levou em outra viagem
testemunhei territórios distantes
cortamos os sertões do meu país
e pensei nos índios paiaiás nos cariris
cruzamos as terras de Canudos
vi as terras onde Antônio Conselheiro sonhou
um outro mundo para este mundo
que ele e seu povo construíram delicados
sonhos com suas próprias mãos rudes
depois chegamos ao litoral a Maceió
e suas praias que eram espelhos do céu
depois o Recife, de Manuel Bandeira
e tudo isto aceso em mim era uma grande estrela
ah quantos anos sem beber das fontes de águas
límpidas de meu país, da água de cacimba
gentil e doce como seus lábios líquidos
terra dos Andradas, de Anita Garibaldi
de Maria Quitéria e da princesa Leopoldina
a austríaca que amou essa terra ainda menina!
meu país começa em minhas veias
no cheiro silvestre dos charcos
em suas paisagens seus arcos
nos sapos tanoeiros coaxando
nas gias gigantes nos tempos de chuva
na lua cheia se derramando
ouvindo um violão nas mãos
de um negro humilde e nobre
chorando pelas madrugadas antigas
nos pirilampos como estrelas dançando
iluminando o vale de uma paragem
rural e perdida feito um rio de luz
brilhando e correndo na noite
o dialogismo dos periquitos verdes
e das borboletas vermelho-escuras
a utopia possível das araras-azuis
ah, meu país! como eu te sabiá!
como eu bem-te-vi tantas vezes!
ah, quanto eu guardei desta terra em mim!
meu país imerso em seus estuários e enseadas
meu país verde como os olhos verdes de minha amada!
terra de Castro Alves, de Carlos Gomes
de Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos
e uma vez na Eslovênia íamos uns poetas
com um amigo pela noite escura estrelada
em um carro Peugeot azul cruzando a noite fria
com casinhas eslavas charmosas à beira da estrada
era uma estradinha de interior tão singela
tão bela que eu chorava sem chorar
e comecei a pensar em ti, oh meu país
e me senti menino como aquele menino
puro que ainda fui, voltando pra casa
com os mesmos olhos de quimera
eu que menino me encontrei comigo
por caminhos perdidos e esquecidos
nas grandes veredas abissais dos sertões
eu que nasci no Brasil profundo
onde havia assombrações, visagens
e gente que invurtava: homens que viravam
coisas seres árvores nuvens pedras bichos
eu que era rezado com ervas por tia Nalva
em tempos de peste e de doenças
e usava patuás iorubás no pescoço
meu país nasce de repente assim
feito uma nascente funda do Ocidente
jorrando incontinente em meu quintal
em minha casa nos Estados Unidos
e penso em tudo que deixei para trás
e que no entanto ainda está comigo
em algum lugar do mapa está meu país
com seus falares aboios litanias e loas
e lá mora meu povo que sabe sofrer e sorrir
e tantas lembranças me assaltam nesta manhã
e forma de figos e compotas de doces e pés de oitis
e um dia numa noite na roça
quando caminhávamos meu pai e eu
entre duas voltas da estrada
eu ouvi um caboclo dentro de sua choça
cantarolando uma meiga cantilena
dedilhando sua viola antiga tantas
melodias perdidas de tempos ancestrais
oh, país perdido que não voltará jamais!
e aqui estou eu, meu país, teu pássaro
cantando pelas veredas do mundo afora
procurando pelos caminhos de outrora
cantando teus rios teu povo teu lábaro
cantando com palavras, sou qual juriti
e quando Hermes pôr em meu ombro sua mão
vou zarpar como navio vou voar como avião
sou como um canarinho com asa
que conhece bem o caminho de casa!
ah, quantos anos já se foram sem saber de ti
e mal espero de novo a chance de retornar
profundo e lírico como um passarinho feliz
certeiro como a flecha de Peri
para minha pátria, para meu ninho, onde nasci!

por toda parte
a vida é impossível
e mesmo assim está em toda parte
lua nova no céu
um pouco abaixo uma estrela lhe faz companhia
uma lua nova e uma estrela dependuradas
na escuridão da noite
do grande mistério por detrás de tudo
impossível contar quantas quilhas
cortam o sal do mar das Antilhas
na areia aprendemos a nascer e caminhar
a domar o calor do sol e o frio da chuva
mas existe a vida: o sol faz a sombra
achando a medida das coisas menores
acharemos a medida das coisas infinitas
a fumaça do avião corta o azul infinito do céu
pardais ocupados fazendo ninhos nos beirais
as folhas obedecendo o outono e caindo
isso que faz a copa da cerejeira dançar ao ar
isso que faz tanto o mar ir e voltar
isso que faz o tempo passar e passar
disso jamais saberemos o nome e nem o que é
mas é infinito o glossário do que podemos fazer
nascer trabalhar gerar filhos sorrir ter amigos
saltar de paraquedas nadar envelhecer
− e quando finalmente tiveres tuas cãs aprenderás
a meditá-las paciente todas as manhãs
e quando chegar a hora indesejada
partiremos como viemos na brisa azul
e em todas as batalhas ganhas e perdidas
e marcado a ferro e fogo nas coisas idas
estará escrito com letra clara bem legível
que a vida é impossível
e mesmo assim está em toda parte

nas cercanias da Golden Gate
de fundo do acre de velhas quitandas e bodegas
e de constelações austrais carregadas de pranto
de arruados brasileiros e das hortelãs e lírios
das bancas de feiras livres e armazéns de café
expostos como uma laranja-da-china repartida ao meio
suja de povo, de fauna e de flora esverdecida
e de lugarejos pobres enfeitados de bandeirolas
− onde dormem casebres de sorrisos barrocos
e onde dormem anjos também barrocos
e do sangue tornado o pó vermelho
de estradas ermas que habitam meus pés
de onde quem eu sou me incendeia
perfumada de manacás azuis, figueiras em flor
minha vida me encontra nesta manhã longínqua
etérea de San Francisco na Califórnia
pungente como a Valsa da dor, de Heitor Villa-Lobos

velhos carnavais
noite fria de novembro
névoa inunda as ruas lá fora
de repente um doce cortejo
passa pela rua dos meus sonhos
mascarados, belas colombinas
embalados por uma doce música
claros clarinetes, doces flautas
entoando melodias carnavalescas
a banda que anima o cortejo
os lampiões lucilando nas esquinas
iluminando a antiga noite
saudade dos velhos carnavais
que nunca vivi…
palhaços, arlequins, saltimbancos
pierrôs dançam cirandas alegres
sorriem, brincam, gargalham, dançam
jogam serpentinas, cantam canções
os confetes são estrelas coloridas
iluminando as velhas noites do Brasil
as frondosas árvores verdes dormem
os casarões antigos iluminados
das sacadas os foliões acenam
para o cortejo que vai passando
a felicidade por toda parte
e eu sou um menino feliz em meio a tudo
mais canções oníricas enchendo a noite
e o cortejo alegre vindo do nada passa
pela rua ornamentada dos meus sonhos
dobra a esquina do tempo e some
e me deixa só, completamente sozinho
com minha fantasia de pierrô triste
na rua perdida dos perdidos carnavais
− de nunca mais!

Narlan Matos nasceu em Itaquara, Bahia, 1975. É considerado um dos poetas emergentes mais importantes da América Latina. Críticos na América e Europa têm apontado a importância universal de sua obra. Elogiado pelo russo Yevgeny Yevtushenko, o espanhol Jua Carlos Mestre, os americanos Robert Creeley e Lawrence Ferlinghetti e o esloveno Tomaz Salamun. Traduzido para o esloveno, italiano, chinês, espanhol, lituano, japonês,, inglês, sueco, croata e alemão. Antologias publicadas no Japão, Eslovênia, Itália e Espanha. No Brasil, publicou Senhoras e senhores: o amanhecer (1997), No acampamento das Sombras (2001) e Elegia ao Novo Mundo (2012). Em 2016, a Rádio Nacional da Croácia dedicou um programa inteiro ao poeta. Ele publica e viaja extensamente pelo mundo.