A BIBLIOTECA SUBMERSA por Nei Duclós

O conto integra o inédito impresso
Mágico deserto: contos fora de forma.

Quando todos se mandaram, aí pela grande crise do Plano Cruzado nos anos 1980, Sinistrus Joe permaneceu na ponta de uma praia oculta em Florianópolis. Vive só, numa casa de pau-a-pique, ao lado de gigantesco menir arqueológico. Ninguém dá bola para ele. É a maldição dessa geração, ser esquecida em vida. Ser enterrada cheia de coisas para dizer. Vendo todos se locupletarem na festa sem fim.

Quando as contradições engarrafam na saída para a longa avenida dos textos, costumo pedir ajuda para o Sábio do Puxadinho na Pedra. Encontrei-o lendo um livro velho, com as folhas caindo na areia, que ele segurava com força nas duas mãos, enquanto os olhos fixavam a página com o fuzil azul de sua atenção. Quando ouviu meus passos, lentamente levantou a cabeça, despregando o olhar da sua leitura. Pensava enquanto me via. Essa era a maneira de ignorar minha presença, imaginava eu. Mas ele estava atento. Como sempre, puxei conversa, depois de sentar ao seu lado, abençoado pelo grande mar que nos fazia companhia.

– Você vota, Joe?

– Eleição não tem importância, seu escritor. O que pega é a sobrevivência. É o estômago, a paz de acordar todo dia e tomar um café. Por falar nisso, já tomou café hoje?

– Já, mas posso te acompanhar em mais um.

Fomos então para o birosca mais próxima, que servia horrendo café frio feito de saco marrom de tanto uso. Continuamos a conversa numa das mesinhas fincadas na praia. Joe não desgrudava de seu livro.

– O que está lendo, Joe?

– Um manualzinho sobre a restauração da monarquia da França depois da queda de Napoleão. Mas é uma droga. Foi um espanhol que traduziu para o português. Fica incompreensível. E ainda tem todo esse veneno ideológico de burguesia contra mundo feudal. É intragável essa porcaria.

Achei que estava se referindo ao livro, mas era ao café.

– Gosto de ler o que todo mundo joga fora, disse ele.

– Onde você consegue esses livros, Joe?

– Na biblioteca que tem aqui perto.

Biblioteca? Na praia? Fiquei com cara de desconfiado, de sonso, e Joe percebeu.

– Vamos até lá, então, sabichão. Vou te mostrar.

Por trás da duna, chegamos a um vasto casarão que parecia abandonado e que se derramava pelo mar adentro.

– A biblioteca fica ali, disse ele, apontando o casarão. É uma construção antiga, que está sendo engolida pela maré cada vez mais alta. Um dia tudo isso vai voltar ao ser o que sempre foi, o fundo do oceano.

Entramos e vi que o chão era de terra batida. Um senhor preto de barbas brancas ficava atrás de uma escrivaninha velhíssima, que se sustentava por alguns paus colocados de viés. Nos pés do móvel, livros empilhados faziam a altura adequada ao bibliotecário.

– Este é Jack, o Marujo, disse Joe. Jack, diga bom dia para o escritor.

O velho nem me olhou. Achei que não enxergava. A convite de Joe, que fez sinal para eu acompanhá-lo e esquecer o porteiro, desci por um imenso corredor atulhado de livros que iam até o teto sem forro. Inúmeras estantes se acotovelavam e iam mergulhando aos poucos. Os volumes da ponta ficavam entregues aos peixes. Muita coisa já estava submersa. Vi um “Os Sertões” só com a metade para fora, o resto já estava sendo tragado.

– Mas isso é um escândalo, Joe. Uma biblioteca desse tamanho, deve ter aqui mais de dez mil livros e eles estão estragando na água. Como você deixa isso?

– O que quer que eu faça? Apenas abasteço isto aqui, não sou pedreiro e ninguém faz nada hoje por amor. Eu apenas vou recolhendo os livros que vejo no lixo.

– Livros no lixo?

– Aos montes, é o que mais tem. As pessoas se desencantam com os livros, se livram deles. Acho que ficam furiosos porque não conseguem ler o que compram. Ou leem e acham uma porcaria. Ou leem e ficam humilhados com a própria ignorância. Desistem. Então deixam no meio da rua, como se fossem bebês abandonados. Eu vou recolhendo e trazendo para cá. Um dia encontrei um saco cheio de cópias espiraladas, feitas de xerox. Eram teses acadêmicas de História. Coisa fina, recente. Nenhuma tinha sido publicada.

Diante do meu espanto, ele continuou, indiferente:

– Os brasileiros produzem de tudo, mas as coisas não emergem para o debate. Fica essa montanha de saber amontoado, desperdiçado. O que pega é dizer que nós não lemos nem temos memória. As pessoas acabam acreditando. Na superfície, escolhem alguns eleitos para serem os papas e assim vão indo por gerações. Normalmente são pais que passam o espólio para os filhos. Aqui no Brasil herda-se a cátedra ou o lugar dos sabe-tudo. Enquanto isso, você vê historiador pedindo esmola ou então vendendo cachorro quente.

Um vento bateu forte e toda a casarona começou a ringir. Livros despencavam: Marx, Engels, Max Weber, Max Heindel. Logo adiante

Graciliano, Rosa, Vinicius, Drummond, Nava. Mais além, memórias de Juarez Távora, Cordeiro de Farias, João Neves da Fontoura. Tinha até Tesouro da Juventude, de capa dura vermelha (já desbotada) e o Monteiro Lobato inteirinho de capa verde. Quando vi “A Chave do Tamanho”, a obra-prima de Lobato, no chão de terra, sendo pisoteado por um cachorro vadio que estava por ali, não agüentei mais e saí.

Precisava respirar um pouco de ar puro. O cheiro de mofo de livro velho me fazia espirrar. Não demorou muito e estava jogando para fora toda minha alergia a bibliotecas abandonadas. Para a euforia de Joe, que ria sem parar.

– O escritor tem alergia a livro velho! Essa é boa. E eu que pensava em doar para você todo esse acervo.

– Pode ficar, Joe, pode ficar.

E fui me embora, cheio de dúvidas sobre as eleições e assombrado pela Biblioteca Submersa de Jack, o Marujo.

Nei Carvalho Duclós (Uruguaiana, 29 de outubro de 1948) é um jornalista, poeta e escritor brasileiro. Tem 17 livros (entre ebooks e impressos) lançados de crônicas, contos, poesias, romance e ensaios. Além de inúmeros textos publicados na imprensa brasileira, sites e blogs e redes sociais. Citações em vários trabalhos acadêmicos, de graduação, mestrado e doutorado. Poemas e contos traduzidos para o italiano pela revista virtual Sagarana, editada em Lucca, e poemas traduzidos para o inglês para a revista Rattapallax, editada em Nova York.

FICÇÃO

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