A FRUTA DENTRO DA CASCA: O NARRADOR E A OBLIQUIDADE, por Cátia Simon
O texto integra o livro “Labirintos da realidade:
diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis”.
Encontramos no Dicionário Aurélio a seguinte definição para obliquidade:
”[Do lat. obliquitate. ] S.f. 1. Posição do que é oblíquo. 3. Inclinação em direção oblíqua. 4. Tergiversação, evasiva, rodeio. (…) Adj. 1. Não perpendicular; inclinado; de través. 2. Torto; vesgo. 3. Fig. Indireto. 4. Malicioso; dissimulado, ardiloso; sinuoso: conduta oblíqua; atitudes oblíquas” (FERREIRA: 1986, p. 1208-9).
Machado de Assis, através do seu narrador-personagem, Bento Santiago, cria a frase que se tornaria emblemática na caracterização de Capitu – “oblíqua e dissimulada”. Segundo Helder Macedo, “E se for possível ou necessário identificar Machado de Assis com algumas de suas personagens, não seria certamente com o senhorial Bento Santiago, seria com a marginalizada Capitu, mesmo quando – sobretudo quando – maliciosamente caracterizada como uma “cigana oblíqua e dissimulada” (MACEDO: 2005, p. 107) Essa obliquidade é percebida ao longo da obra machadiana não só pelo dissimulado, mas também pelo sinuoso, de través, malicioso…
Em A Bela e a Fera ou a ferida grande demais, é por um olhar oblíquo que Clarice revela todas as feridas de Carla, a protagonista do conto. Ao olhar o mendigo e sua ferida, Carla imediatamente enxerga as suas mazelas com uma clareza tão gritante que a quase faz desmaiar: “O mundo gritava pela boca desdentada desse homem” (LISPECTOR: 1992, p. 111).
Ela também se dá conta dos pontos em comum que tem com o mendigo: “Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola, mas mendigo o amor do meu marido” (idem, p.115); “Há coisas que nos igualam, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos” (idem, p.116).
É pelo olhar oblíquo, enviesado na realidade de Carla, a própria protagonista, que esta se dá conta da alienação que vive em relação à realidade social. Clarice opta por desnudar essa realidade obliquamente sem fazer uso do “traço grosso” da realidade, mas com a delicadeza de quem descortina algo. A ferida deve ser “tratada” com assepsia e delicadeza para não afugentar o já maculado ser.
É interessante que a escritora vai mostrando-nos o que se passa na cabeça de Carla e do mendigo, alternadamente. Para ele, a moça, ao lhe dar a nota de 500 cruzeiros e ao sentar-se a seu lado no chão, só poderia ser uma comunista. O nível de conhecimento da realidade do mendigo parece ser mais qualificado do que da moça que possui toda uma estrutura sociocultural à disposição. Aqui também, a exemplo do mestre, a escritora serve-se da desigualdade social para nos revelar a relação entre o eu e o outro, ratificando, mais uma vez, Sartre.
Percebemos por tudo isso, em Clarice e Machado uma tensão entre ficção/realidade revelada na relação autor/narrador/personagem/leitor. Os escritores provocam seu leitor a ir para a realidade, buscando não as simetrias com a ficção, mas o que leram pela obliquidade.
O crítico Macedo dá um exemplo contundente de semelhança na forma e tratamento do tema em três romances de Machado: Memórias Póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro.
os três romances tomados em conjunto, definem atitudes críticas complementares ao determinismo social e ao realismo como sua manifestação literária: o mesmo determinismo inerente à filosofia do “Humanitismo”, em que assenta, por via do seu fundador, a convergência entre Memórias Póstumas e Quincas Borba, tem seu equivalente semântico na argumentação casuística do narrador-personagem de Dom Casmurro, Bento Santiago, o mais verossímil dos confirmadores de expectativas fundamentadas numa aparente lógica de causa e efeito e o exemplo mais acabado de “narrador suspeito” na literatura da língua portuguesa (MACEDO: 2005, p. 93-4).
Eis aqui uma articulação da obliquidade machadiana: é na contramão ou ao revés que o genial escritor ataca os pilares do senso estético literário de sua época. O rei estava nu, mas só Machado tinha a coragem ou os olhos para enxergar. Como anunciar o que para ele era evidente? Tinha a “capacidade de ver o invisível e palpar o impalpável” de forma enviesada, oblíqua, dissimulada, conforme Capitu ensinara, seduzindo e ganhando a confiança do leitor no primeiro momento para depois mostrar-se como realmente era, seguindo a lógica de Bentinho, é claro. “A variedade de procedimentos que emprega na sua ficção surge no próprio processo narrativo, já que Machado lança mão de narradores com diferentes perfis, ajustados às suas necessidades criativas.” (MELLO: 2009, p.6) É por esse viés que o escritor vai provocando o estranhamento e a consequente dificuldade em enquadrá-lo em correntes literárias fechadas.
Ao ler a obra de Clarice, vemos esta iluminar-se obliquamente; a luz que rebate no espelho aponta um precursor, Machado de Assis. Sobre esse assunto, vejamos o que Lúcia Helena declara:
creio mesmo haver um pendor de machadiana obliquidade (grifo meu) na maneira pela qual Clarice escolhe e registra os laços que acolhem e acossam as personagens. Com a sutileza que não quer nem simplesmente opinar, nem julgar, mas principalmente impedir que se percebam apenas as simetrias entre arte e realidade, ou que se tente fazer da arte um espelho reflexo do social colhido mecanicamente, seu texto conduz o leitor a procurar, nas zonas de conflito, os ardis e alertas da narrativa (HELENA: 1997, p. 36).
Em Água Viva, a narradora explicita seu ponto de vista oblíquo, sem deixar dúvida quanto ao procedimento deliberado:
Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos – é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição (LISPECTOR: 1993, p.74).
Além do gosto e registro do detalhe, por exemplo, “Nem Machado, nem Lispector inscrevem seus narradores em escolas, no sentido que escapam aos rígidos cânones de classificação” (HELENA: 1997, p. 30). A partir de Bosi, é possível também vislumbrarmos pontos de contato ou intersecção entre Machado de Assis e Clarice Lispector. Para ele, por exemplo,
Machado teve mão de artista bastante leve para não se perder nos determinismos de raça ou de sangue que presidiriam aos enredos e estofariam as digressões dos naturalistas de estreita observância. Bastava ao criador de Dom Casmurro, como aos moralistas franceses e ingleses que elegeu como leitura de cabeceira, observar com atenção o amor-próprio dos homens e o arbítrio da fortuna para reconstruir na ficção os labirintos da realidade (grifo meu). Pois se a reflexão se extraviasse pelas veredas da ciência pedante do tempo, adeus aquele humor de Machado que joga apenas com os signos do cotidiano… (BOSI: 1994, p. 180).
Machado demonstrou, não só através de sua produção literária como através da crítica que escreveu, a obstinação do traço certo, do traço escrito capaz de desvelar a alma humana em toda a sua complexidade. Abre mão dos padrões estéticos da sua época ao declinar do “traço grosso” do Realismo, por exemplo, na crítica que faz ao Primo Basílio de Eça de Queirós. Para o escritor, o realismo de Eça e Zola ainda não havia esgotado a realidade: “Há traços íntimos e ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa exposição de todas as coisas. Se são naturais para que escondê-las?” (ASSIS: 2004, p. 913).
A obliquidade em Machado é analisada por Marta de Senna no ensaio Dom Casmurro: a loucura oblíqua e dissimulada. O narrador Bentinho é, “ele, sim, oblíquo e dissimulado”, sendo a questão da traição de Capitu, “uma falsa questão”. Ao longo do texto, o narrador vai atraindo o leitor para falsos indícios, desnorteando-o, fazendo-o crer na culpa de Capitu, previamente instituída sem direito à defesa ou a considerações. Como alcançar o objetivo? Dissimulando, rodeando o foco sem o abordar diretamente, tocando-o de forma oblíqua. Nada de enfrentamentos, isso não condizia com a personalidade ou o caráter de Bento Santiago.
Ainda para a estudiosa, outra obliquidade dissimulada é o diálogo com o texto de Shakespeare, não com Otelo, tão comentado pela crítica, mas com a loucura de Hamlet, cuja maldição assentou-se na dúvida cruel que se tornou clichê nos nossos dias: “To be or not to be?” Bentinho é atormentado pela dúvida da traição, pela inferioridade diante de Capitu, por tantas outras questões que o fizeram mentir e dissimular a vida inteira.
Em PCS, Joana não estaria o tempo todo atormentada pela dúvida nas escolhas? Ser má ou boa? Aceitar o marido ou o amante? Ficar ou ir embora? Não estaria Clarice, aqui, também dialogando com o inventor do humano, Shakespeare, e o perscrutador das almas, Machado?
Sobre a produção literária de Clarice Lispector, vemos Bosi apontar a insuficiência da “triagem por tendências em torno dos tipos de romance social-regional/romance psicológico” na ficção contemporânea. E mais, subsidiado por Goldmann, propõe uma “hipótese explicativa do romance moderno, na sua relação com a totalidade social”, distribuindo o romance brasileiro de 1930 para cá em, pelo menos, quatro tendências (romances de tensão mínima, de tensão crítica, de tensão interiorizada, de tensão transfigurada), segundo o grau crescente de tensão entre o “herói” e o seu mundo. Dessa maneira, o autor revela a relação da obra, objeto estético, com o mundo objetivo. Clarice Lispector, assim como Guimarães Rosa, por suas experiências radicais, estariam na tendência de romances de tensão transfigurada:
O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. […] O conflito assim ‘resolvido’, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia.
A experiência estética de G.Rosa e, em parte, a de Clarice Lispector, entendem renovar por dentro o ato de escrever ficção. Diferem das três tendências anteriores enquanto estas situam o processo literário antes na transposição da realidade social e psíquica do que na construção de uma outra realidade. É claro que esta suprarrealidade não se compreende senão como a alquimia dos minérios extraídos das mesmas fontes que serviriam aos demais narradores: as da história coletiva, no caso de G. Rosa; as da história individual, no caso de Clarice L. (BOSI: 1994, p. 392).
Diante do exposto, podemos afirmar que, tanto quanto Machado de Assis, Clarice Lispector rebelou-se contra os padrões estéticos e culturais de sua época, foi adiante do que lhe prescrevia o seu tempo. A escritora, considerando o contexto literário brasileiro, encontra-se na contramão da estética real-naturalista oitocentista, segundo o que nos aponta Silviano Santiago no artigo “Aula inaugural”, publicado originalmente em 07 de dezembro de 1997, no Caderno Mais da Folha de São Paulo e que consta em “O cosmopolitismo do pobre”. Isto, segundo o ensaísta, evidencia uma maneira “oblíqua da escritora, para usar uma palavra cara à Clarice” (SANTIAGO: 2004, p. 240). Tal obliquidade evidencia-se na maneira de entender que o trabalho não é só a expressão da força alienada; nele também está embutido o cuidado – qualidade imprescindível “que contribui para o progresso qualitativo do indivíduo e, por consequência, do homem” (SANTIAGO: 2004, p.240).
Para ratificar essa ideia, o crítico aponta que o conto Amor de Clarice nos leva a pensar que “tudo é passível de aperfeiçoamento”. Silviano Santiago sentencia que aquilo que era projeto ou utopia na teoria de Marx em relação ao trabalho enquanto meio de “enriquecer e embelezar a existência humana”, em Clarice era possível ser vivenciado, conforme a narrativa exemplificada anteriormente.
A obliquidade de Clarice ilumina o seu precursor Machado e é iluminada por ele, num lusco-fusco benjaminiano, ampliando perspectivas e diálogos socioculturais que extrapolam suas nacionalidades, cujo centro de responsabilidade continua assentado no homem. Marta de Senna aponta a razão da preferência de Machado por Shakespeare, o fato deste, segundo Haroldo Bloom, ser “o inventor do humano”.
Nesta perspectiva inaugurada pelo grande dramaturgo inglês, vislumbramos, através das leituras clariceanas e machadianas, quem somos, nossos dramas, impasses, dissimulações. Aqui está justificada a definição da literatura de Clarice por Guimarães Rosa que lhe disse certa vez que a mesma servia para vida, deixando a escritora lisonjeada: “Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei, tão feliz me deixou na hora: disse que me lia, “não para a literatura, mas para a vida”. Citou de cor frases e frases minhas, e eu não reconheci nenhuma” (LISPECTOR: 1992, p. 137).
Certamente a escritora não foi acometida de amnésia, pelo menos naquele momento nada consta, mas o que podemos inferir pelo o que se coloca nas entrelinhas, é que o drama da existência humana tem caráter universal, por isso não é produto exclusivo de Clarice, nem ela o reconhece dessa forma. Suas questões foram também as de Shakespeare, o inventor do humano, segundo foi referido inicialmente por Bloom,e, de Machado; ambos, podemos dizer, seus precursores.
Referências
BOSI, Alfredo. Clarice Lispector. In: ______. História concisa da literatura brasileira. 32ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. RJ: Objetiva, 1998.
HELENA, Lúcia. Nem musa, nem medusa – Itinerários da escrita de Clarice Lispector. Niterói: EDUFF, 1997
______. Cuidado, escrita e volúpia em Clarice Lispector. IN: Clarice Lispector. Novos aportes críticos. Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana: Universidad de Pittisburg, 2007.
MACEDO, Helder. Machado de Assis: entre o lusco fusco. IN: Nos labirintos de Dom Casmurro – ensaios críticos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Tradição e modernidade na obra de Machado de Assis. In: Machado Plural. Ana Maria Lisboa de Mello (org.). Porto Alegre: Armazém Digital, 2009
PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis, ensaios e apontamentos avulsos. Astrojildo Pereira/ Martin Cezar Feijó, organizador. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 3ed., 2008.
SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice Lispector. In: O cosmopolitismo do pobre. BH: Editora UFMG, 2004.
SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do Bruxo: ensaios machadianos. 2ª Ed rev. e modificada. RJ: Língua Geral, 2008. – (Coleção Língua de Fogo)

Cátia Castilho Simon é doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Livros individuais: Labirintos da Realidade – diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis. POA: Redes editora, 2013 – Prêmio Vianna Moog, 2014 (ensaio) UBE/RJ.Por que ler Clarice Lispector (ensaio) Coleção minibuk, TDA (Território das Artes), 2017.Rastro de estrelas (contos), POA: TDA, 2022. Não há oásis no deserto (poesia) – Ed Venas Abiertas, BH, 2023 (no prelo). Integra o Mulherio das Letras/RS; vice-presidente cultural da AGES – gestão 2023/2024.
