A HISTÓRIA DO DESMAIO, por Wellington Amancio da Silva
Este escrito tem como base o que vi e ouvi, nos dois anos e poucos meses de convivência com o professor Raul Ornelo de Oliveira Neto. As fontes são seus textos e a memória de suas falas. Quanto aos primeiros, esta narrativa se consolidou no que li e entendi (sua letra era terrivelmente desleixada) e de parte de suas conversas que me lembro (se é mesmo que lembrança é história), o que pode levantar alguma suspeita a certos leitores. Se de fato alguma coisa realizei, oferto aqui, para que a vida do nosso personagem seja lembrada por esta nossa geração de dormentes.
Como foi dito, no mundo o ser — o homem tomado por necessidades — tem a sua duração, tem o seu limite e quer ir para além daquilo que nem sequer esboça — fugir de quê e para onde? Eu vi um homem rodar em círculos e achar aí o seu alento. Depois, ele nos disse coisas… nos disse que o Bem vigente é fruto de forças consolidadas; O mal é tudo aquilo que não pode falar e se defender; a ferida dói menos que a cicatriz ferida; os aís existenciais dizem pouco das dores internas, blá, blá, blá, etc., mas isto foi no início. Depois de muitos destes axiomas proclamados nas aulas o professor Raul tornou-se apático, disse-nos que a crítica, como um sopro que sai da boca, tal a qualquer vento, não perfura a pedra. “Acho que estou meio niilista… É a velhice, meu filho…” — dizia. Nos tempos bons da escola ele riscava algo no quadro negro para interromper-se em seguida, falando coisas aparentemente sem nexo. Como éramos eu e mais quatro paspalhos, não havia muito em que se preocupar quanto ao que dizer… Neste ambiente, sem mais nem menos (um sorriso irônico no canto da boca) o professor dizia: o presidente é um mentiroso e o diabo é o pai da mentira, logo, há muito nepotismo nisso. Às vezes ele discorria sobre um verso de Camões para em seguida interromper-se e tratar destas coisas. No entanto, após o falecimento da sua mãe, notamos que foi tomado por um silêncio que destoavam muito da sua profissão. Notamos em seu rosto e em seus gestos um esforço hercúleo para falar a mínima frase. O professor Raul tinha lá seus sessenta de poucos anos, e sua mãe, Dona Júlia, viveu uns oitenta e cinco anos, eu acho. Cuidara da mãe, desde que os dois irmãos se casaram e se mudaram para São Paulo, há quase três décadas. O professor Raul era um solteirão; tornou-se também um hóspede solitário em sua casa — mas, assentava-se na poltrona velha de veludo à sombra densa da luz apagada e sentia paz, porém, apenas até ter que ir à escola. Por vezes entrava cabisbaixo em sala de aula, como se ali não estivéssemos. Mantinha-se em silêncio o máximo que podia, estirando um tempo ocioso, até o questionarmos acerca do conteúdo a ser estudado. Pelo menos a mim, de início, aquele silêncio era um incômodo. Eu tentava puxar algum assunto enquanto ele escrevia calado no quadro negro. Me lembrei que ele citava a Bíblia.
— O senhor é um homem religioso, professor?
— … Somente até quando não faltar a vodca.
Tal a uma pessoa com cirrose, ele tinha um inchaço abaixo do peito maior que a barriga protuberante. “Somente até quando não faltar a vodca.”
Noutros tempos, uma frase como esta nos faria rir, ao menos por convenção, mas, o professor, após um intervalo de silêncio, a enunciou com tamanha dificuldade ou má vontade que eu me arrependi de tê-la feito. Dizem que a maioria dos homens perde a fé quando perde a mãe, que a vontade de responder a uma pergunta, num diálogo, é uma questão de fé, mas não necessariamente fé em Deus ou nos homens. Pode ser o caso de fé em si mesmo, fé na beleza de uma frase que interrompe o silêncio, enunciada depois de um pigarro. …coisa do tipo.
Acho que eu era seu aluno dileto, porque sempre conversávamos um pouco depois das aulas, sobretudo quando ele bebia. Penso que ele me achava um aluno aplicado, por minhas perguntas, mesmo que às vezes, enquanto eu falava, seu olhar estivesse disperso, no bar ou na sala de aula. Na verdade, eu me esforçava por mudar de assunto em relação às suas explicações, ainda que parcimoniosas, geralmente eram maçantes (em torno de algum filósofo da Antiguidade ou de algum conceito filosófico). Eu gostava dele — exceto pelo fato de que tinha mau hálito (aquele cheiro ácido de queijo meio vencido e mofo de livro). Eu pouco me importava com seu hálito, porque sua presença era uma coisa boa, uma figura que estava ali quanto mais eu desejava que estivesse, como um pai que não tive. Quando estava bem, me dizia coisas que nunca tratava em sala de aula, costumava me confidenciar, me ensinava como afastar-se dos invejosos e se aproximar das mulheres, “ótimas conselheiras em qualquer tempo” — ele dizia agitando o dedo indicador.
Andava com dificuldade e ofegava. De quando em quando soprava como quem apagava uma vela. Me disse que havia dias em que um mínimo gesto lhe cansava, até mesmo pegar a caneta na escrivaninha, mas não um cansaço físico; era “um cansaço ontológico” — dizia. É estranho falar disto, mas eu achava que ele por mais que quisesse escapar do peso do seu corpo idoso daí não podia sair, “do corpo não poder sair…”, não podia remediar “o corpo com defeito…” — estava em seu semblante que não queria habitar ali, que talvez preferisse a leveza de um pardal, e sua brevidade. “Todo corpo já nasce meio defeituoso, você sabe disso. É a gravidade que nos amaldiçoa. Eu não vou explicar mais…” — ele dizia. Num tempo lentíssimo/ e quase se entende/ e quase de novo/o chamado/ para onde? — escreveu na cadernetinha azul, sempre no bolso da camisa. Não entendi. O professor me olha com seus olhos enfadados; ele sabe que não entendo de poesia. A caneta meneia entre seus dedos, como um gesto de reprovação.
— Escrever… é o melhor modo de lidar com o fato… de estar so-zi-nho. Em outras palavras, lidar com o fato… de que você não é im-por-tan-te. É por isso que se escreve.
— Entendo. — eu dizia. Eu não entendia nada e nem queria entender.
Na verdade, não sei o que dizer. Não me interesso o bastante. Saíamos da aula às 18 horas; eu tinha pressa de sair da aula. No fim da tarde já estou enfadado, e ele talvez muito mais do que eu. Por isso também a praça boceja. Os pardais ainda fazem alarido nas árvores. Uma coruja os sobrevoa e depois mergulha para enfim trazer um corpo miúdo entre as garras. Em minutos, o silêncio, e a noite mais densa. Estávamos sentados num banco de praça, em torno da igreja; não temos o quer dizer — é como se um pensamento não se articulasse naturalmente em palavras. O professor, eu sei, não atura este tipo de hiato, por isso diz coisas, qualquer coisa que lhe venha. E quanto mais fala (mesmo que duas ou três frases em bons intervalos) mais demonstra cansaço.
— Deixa eu te contar outro segredo… Às vezes me estranho… mas não sem explicação… Veja bem: sumiu-se de dentro da minha cabeça há um tempo aquele que me advertia… a me levantar mais cedo da cama e não faltar ao trabalho, que me exortava a pagar em dia as contas… e obedecer às autoridades, que me aconselhava a não detestar certas pessoas. Hoje, me incomoda o seu silêncio. Qualquer dia desses e eu nem sei…
— Psicologia, professor… Nãos seria o senhor que falava consigo mesmo? A psicologia até explica bem essas coisas da voz interior… o senhor sabe o que quero dizer.
— Eu falando comigo? Ora, não sei… Essa história toda de alter ego eu não acredito muito… Vozes…
— É. Tudo é possível neste mundo.
— Hoje quem raro fala é outro, porque noto uma voz diferente… este, se antes me observasse de dentro, como quem já fosse dono da casa, me desaconselha;
— É. Tudo é possível…
— Já o eu de verdade me fazia bem e se foi… — ele disse.
Certa vez estávamos eu, Cláudio, Pedro e Ernesto na casa do professor, tomando vinho barato, comendo bolacha “água e sal” e queijo de coalho. Também umas xícaras estavam na mesinha da sala, junto a uns livros, e um fio escuro de vinho escapava da base de um copo americano, fazendo uma curva e atraindo moscas. Era lá pelas vinte três horas; um vento frio adentrava pela janela ampla da sala, a cortina encardida agitava-se. O professor pôs para tocar baixinho o face value de Phil Collins. Todos nós gostávamos muito daquele álbum. Ouvíamos em silêncio, enquanto a garrafa de selo dourado secava. Não demorou até Cláudio gritar desesperado (olhos arregalados, vinho escorrendo pela boca, as mãos trêmulas). Ele emitiu um longo “Valha-me, Deus!” com o dedo indicador para o professor e continuou: “Um homem de preto saiu das costas dele!”. O professor girou com dificuldade para vê-lo, quando apontou à porta dos fundos e disse ofegante: “é ele… é ele… é ele… o outro!…”. A testa de Cláudio estava suada e seus braços pareciam desgovernados. Pedro e Ernesto apertavam os olhos para melhor divisar alguma coisa à porta, mas nada viram. Eu também não vi coisa alguma, por isso achei a cena ridícula.
— É esse o dono da casa… e me desaconselha… — disse o professor.
Pensando em suas palavras, acho que o professor vive ansioso sobre esse tal de “outro” residindo nele, como um besouro dentro da artéria. Se for mesmo verdade, este “outro” que escreve através da sua mão o faz solitário; acho que este “outro” quer o professor para si. Por que digo isto como se eu pudesse sondá-lo por dentro? É uma intuição… ou uma metáfora…ou ainda uma forma de eu tentar “acompanhar” a sua conversa, entender o máximo possível, firmar algum diálogo — a gente tem liberdade para falar dessas coisas… Insistindo nisto: um quase o habita, persiste em não sair de lá de dentro. Que coisa!? Mas, o que posso fazer? Nada! Um quase peristáltico, um enraizado que nunca vi, um “outro” que o acena de dentro para dentro, como um desmaio que sonda outro desmaio. Ele sabia, ele me disse, que fosse talvez uma dessas pessoas possuídas por uma coisa que desperta devagar e dá sinais sutis em intervalos longuíssimos. Seu “sopro” no coração (detectado por ultrassonografia, há décadas) trouxe-lhe a senha: “era preciso nascer de novo”. Se não se pode nascer em corpo novo, talvez se possa nascer num “onde” novo, sair de si. Conversa de loucos, se quer saber (e eu não me esqueço do vinho e da cena de ontem à noite). Mas, aos poucos eu ia entendendo o seu caso… Os desmaios durante a adolescência, o gosto por essa ausência de mundo adquirida a custo com as quedas, passamentos, a língua embolada, a boca espumando, os olhos virados, uns estados opacos de espírito… Reerguer-se a custo, era preciso, eu entendo o professor; reerguer-se sabe-se lá de onde, enfrentar uns pesadelos… reinventar-se — era preciso habitar nestas agruras. Me contou certa vez que após um desmaio anotava tudo: hora, dia e lua, o que achava que via do outro lado… Aperfeiçoou-se nisto… Os desmaios — aos poucos ele adquiriu a noção de “outro lugar”, outro modo de ser e estar… o “Desmaio é assim!”. Porém, com o tempo, ele me disse não conseguir mais diferenciar sonho de desfalecimento, realidade de imaginação, gente real de certos espectros.
Assim, eu aprendi a diferenciá-los, sonho e desmaio. Distinto do sonho em si mesmo, que é uma sombra debaixo de alguma luz, “desmaiar é outra vida que se vive noutro lugar, mais iluminada, num tempo que é outro, porque seu ínterim se revela tal a uma epifania” e, “…acordar de um desmaio é o mesmo que atravessar uma grande porta”. De modo parecido ao sonho “decorre aos poucos a lucidez no retorno de um desmaio, porém, sem confusão”. Sobre tais coisas o professor escreveu: Se um sonho decorrer sem pesadelos, tem-se ainda algumas específicas lembranças, advindas de um nível abaixo da vigília e da agitação, muito embora um sonho não seja uma fábula desinteressada, isto é, jamais é à toa que se sonha (por pior que seja a dormida) —sonhar é sempre um aviso, uma conexão mínima, repentina, um tateio aperreado das mãos sobre o muro aveludado da vida eterna. Eu mesmo penso que o sonho geralmente aflora como desejo que, por sua própria vontade, ultrapassa as ponderações da linguagem; no sonho pode habitar um eu onírico, e sendo assim outro, de um mundo outro, e não apenas meu ser que me é próprio […], neste caso, o ser do professor Raul (se é que entendi) — que é sempre esse bípede conhecido, que vem à tona, num paletó azul escuro largo pelas ruas e carregando uns livros — pode ser, por exemplo, aquele eu que foi-se embora de dentro dele, deixando sair-lhe pelas costas a negra aparição: o “outro”, que decerto vai e volta quando quer.
Me disse que via figuras alegóricas de toda sorte no meio de torvelinhos; imagens advindas do senso outro de quem tinha as mãos sobre a sua vida — o sonho nunca era de todo seu, e mesmo no fundo mais recôndito do seu ser havia outras vozes uníssonas, outras vezes emaranhadas, buscando uma escuta, buscando expressar-se, ou, do outro lado, simplesmente vivendo as suas vidas. “Minha mãe morreu em 18 de agosto, às 14 horas e 38 minutos. Eu acompanhei todo o processo: havia contraído esse mal que está matando todo mundo; faltou-lhe ar por cinco dias, e assim foi e não teve jeito; naquele último quinto dia a pupila se dilatou (o cérebro faliu); parou de respirar (convite do corpo à soltura do espírito); estirou-se as pernas como quem se espreguiça (uma explosão de endorfina e serotonina marca a saída do espírito do corpo para Deus…). Depois que me rearranjei o mínimo, após o sepultamento, passei a buscá-la em sonho, embora ela me aparecesse raramente, estando sempre emudecida. Em seguida desenvolvi um método de visitá-la nos desmaios, contudo, eu precisava desenvolver modos de desmaiar quando necessário. Tive sorte: uma voz sussurrou em meu ouvido a palavra “Carnaval”, e eu passei a usar com cuidado o clorofórmio”.
Sua tese — sobretudo após a morte da sua mãe — é que o desmaio é a prova incontornável da transição entre a vida e a morte, e não o sono profundo; no desmaio se pode ir cognitivamente aos espaços da morte, que para ele não são espaços revoltos, indômitos. Ele disse que poucos se lembram de um evento bem-sucedido no fundo de um desmaio; somente aos iniciados certas lembranças. Todavia, quanto aos sonhos, estas vêm à tona, sim, porém geralmente corrompidas, porque não resistem ao plano da razão que as “oxida”, as “embaralha”; as “invalida” — palavras dele; “o plano da consciência faz muito mal aos conteúdos oníricos, mas as imagens do fundo de um desmaio se fixam muito bem às paredes da memória”. O professor Raul anotava seus sonhos num caderno de folhas sem pautas; me permitia ler alguns trechos. Após cada enredo, cada paisagem, evento, ordem, instância, fato e conversações anotados, ele se debruçava numa leitura detetivesca em busca de alguma ordem, muito embora ainda não a tivesse encontrado. Se o sonho era uma versão aleatória da “capa da vida”, o desmaio era a cópia fiel do “verso da vida”. O sonho era a alegórica aproximada de um cosmos, era mesmo um cosmos estranho, diáfano aos sentidos, escorregadio à narrativa — ele escreveu. Já o desmaio consistia de “um ambiente familiar, terno, aconchegante, repleto de informações, entes conhecidos, marcos e paisagens revisitadas”.
Outra vez, eu e Cláudio estávamos em seu quarto, acompanhando-o, quando com o auxílio de um chá de cogumelo, Clonazepan e sabe-se lá o quê, se pôs a dormir por três dias seguidos, num sono profundo e ofegante, “sem beber água ou comer pão”. Depois, enviesou-se para dentro do sono e do sonho, como quem escorrega lento por uma ribanceira e desaparece, restando as roupas ocas, vazias, por sobre a cama que eu mesmo verifiquei. E, como o sono para quem dorme não tem início nem fim, do modo tal e qual partiu desaparecendo, achegou-se como presença entre nós, como se nunca houvesse ido, sem nem o mais nem o menos de si, inteiro, firme, o mesmo — de modo que duvidamos bastante se deveras tivesse ido a algum outro lugar, dormindo. Me disse depois que sem saber ao certo o que o fizera dormir tanto, pressentia que era aqui mesmo que esteve o tempo todo, no meio de nós (neste “nós” sem a sua mãe) e frustrou-se. Desejava um modo de ir, e realizando-se e estando lá manter a noção, manter o tino, pensar, falar e escrever. Eu achei justo.
— Como é mesmo do outro lado? — questionei sem encará-lo (pois, ele andava ainda mais abatido, olheiras, tal a um defunto).
— Acho que é idêntico ao aqui e agora… Apenas difere o tempo… que é arrastado… por causa talvez do peso do corpo… e do desejo ansioso pelas coisas que somente há do outro lado… Almejar nos retém… e nos mata…
Contou-me que na noite passada um sonho lhe adveio em que estava de pé, mas que por um momento não sentia suas mãos, nem seus pés, e quase todo o dorso não conseguia mexer — e ali, a planície era nubilosa e a vegetação familiar, mas, durante tediosas horas não havia ninguém por perto, e ele bocejou; depois, definiu-se uma silhueta feminina envolta em claridade, e que segurava um estandarte; aquela figura o observava em silêncio, um vinco de insatisfação entre as sobrancelhas, como se reprovando a presença dele. A manhã estava acinzentada e fria e possuía uma leveza marcante envolvendo o horizonte de alvor; em perspectiva, atrás das serras, deslizava uma dúzia de nuvens como rostos de expressões entediadas; na planície viu ainda as colunas azuis dos casebres, as janelas nodosas, e entre cortinadas pessoas envolvidas em seus afazeres, os telhados de um vermelho escurecido, a fumaça da chaminé, o cheiro de pão, que denunciavam o “acume da manhã”. Atrás de uma cerca velha e encipoada, outra mulher, desta vez de uns sessenta e poucos anos; reclinada lavrava a terra escura e relvada, sem percebê-lo; o professor Raul se aproximou e acenou uma e outra vez, mas sem conseguir chamar sua atenção; educadamente dirigiu a ela três ou quatro palavras de saudação, porém, a senhora continuava muito aplicada ao seu ofício. Não a reconhecia de todo, mas suspeitava que ali fosse a sua mãe saudosa— sobretudo por causa de um sinal no ombro esquerdo; quando se aproximou o bastante, de modo que pudesse olhar em seu rosto, viu-se a si próprio, num corpo de senhora. Indiferente, ela cavava… Mas, o que queria cavando? Coisas do sonho, penso que ela buscava — e ele também! Eu acho ainda que somente num desmaio se pode buscar o que se perdeu; num sonho, não. Pela técnica do desmaio se valida a justificativa de ir atrás do que já não existe deste lado. Dentro de um desmaio busca-se a si mesmo; se se encontrar achar-se-á tudo mais.
Mas, e aquela senhora, a sua mãe? O professou me contou que ali de bom grado a encarava, e postulou a questão: a saber — antes, em que nível de vida vivia-se num sonho? Naquele espaço onírico, revisou seus sinais vitais: em seu peito a pulsação e o arfar dos pulmões; sentiu no meio das mãos o calor do seu bafo — percebeu que estava vivo, na definição essencial de “estar ciente” (que era apenas o “cogito, ergo sum perdurando sobre o calor do sangue”— vital em qualquer lugar, aqui ou lá — que o professor Raul queria).Suas pernas firmes, ainda bem, e as mãos estavam trêmulas como sempre — e isto era-lhe de muitíssima importante, porque este sonho muito corriqueiro, porém grave, demandava um estado de atenção que lhe consumia excessiva energia e tino — “as mãos trêmulas como sempre” e o “corriqueiro” dentro deste “sempre” demonstravam que sua consciência era a mesma em qualquer lugar, sonhando ou acordado; e sema problemática do grave dentro dos estados alterados não haveria condição de envolvimento; era necessário não perder-se (prosseguir de mãos dadas, isto é, sua mão cárnea dada à sua mão espiritual) — tinha medo de estar morto dentro de um sonho ou desmaio, e ninguém avisá-lo; e é precisamente nestas condições de gravidade que o coração acelera; “do contrário, para quem vai jazendo bocejam os sinais vitais até que findem, e isto é devido à fleumática ausência de todos os problemas existenciais, restando apenas a paz, ou, a terra na cara indiferente de um defunto”.
Não tinha certeza se aquela senhora reclinada lavrando a terra era a sua mãe, todavia, por questões inerentemente afetivas forçou a si mesmo a uma convicção, do tipo irremediável, que aquela senhora era a sua mãe, e assim foi. Raul observava a presença da mãe como uma figura viva — porém um tanto diáfana —, num vestido branco e azul marinho claro; os cabelos brancos ornados de um véu esverdeado. A mãe, num dia nublado, à frente de uma planície alta e acinzentada pelas nuvens, reclinada, lavrando a terra. Sim, a mãe curvada, quase a ajoelhar-se num gesto votivo, como quem buscava entre brotos de feijão um encontro com o numinoso. E aquela árvore ao seu lado? Uma oliveira antiga e tinha rica sombra. E o que era? Não. A senhora não lavrava; revolvia cuidadosamente uma camada de terra, como quem buscava encontrar algo ali, antes conhecido. “Era o anel de casamento que perdera para sempre?” — me disse o professor —. Sua mãe ajoelhou-se por fim, e estendeu as mãos para dentro daquela concavidade junto à árvore e retirou, muito delicadamente, um rebento telúrico de cabelos negros, um lactente, um menino, seu terceiro filho, e, num gesto delicado, cortou-lhe o cordão umbilical terroso, e entoou como quem uivava: “Rauuuul…” Agarrou-o com afeto, recostando-o sobre o peito e amamentou-o longamente. O professor Raul me disse que observava com ternura e surpresa, mas “estranhou” o menino, mesmo estando certo de que aquele era ele. E, por causa desta autodescoberta onírica, o professor se convenceu acerca da imprecisão do seu eu — “ah, foi aquele menino que semanas atrás me desabitou e aquele outro me adentrou…”. Agora que este seu eu esvaziado tornou-se demasiadamente rarefeito e oscilante, no horizonte mesmo da sua personalidade, o professor Raul parece que se desapegou de tudo ao seu redor. Afirmava que quando conversava conosco o fazia por meio demonólogos. Estávamos todos dentro de um desmaio.
Lembrando-se dos últimos acontecimentos, quer no plano real quanto no plano mais nublado, ele tornou-se ainda mais inquieto, uma arritmia; lembrou-se de um antigo pesadelo: seu coração era maior que suas pernas, seus braços e seu dorso; seu coração pulsava, seu corpo chacoalhava; ele andava penso à esquerda, como um ébrio. O sonho! “O que anelava dentro de mim” — talvez ele pensasse muitíssimo convicto — “não era somente um coração inchadíssimo (que ainda alguma outra coisa o fazia bater) era o reflexo de algo muito maior” que dele fluía, e que o fazia pensar, sentir, andar — eu acho que por causa do “outro” que o habitava… quem? Se esse “outro” viesse de fora dele seria uma ilusão, ou um daimon; todo o sentido já existe dentro! Mas, ali, estava a sua mãe na labuta, lidando sozinha, como no tempo em que seu pai sumiu de casa. Rever a mãe era retornar à estaca zero, num horizonte branco e sem sons, como se visse um deus, como se nascesse de novo, porque agora estava farto até a morte de ver a casa vazia e sem sentido. Por isso, eu acho que o professor Raul buscava aquela lucidez estranha, aquela transcendência sem volta, de “sair-se para fora”, entre o sono, os sonhos e os desmaios dos alienados do mundo. E ele, de tanto falar em coisas do além, me influenciou bastante a pensar ao avesso, a exemplo de um devaneio em que o vi levitando, aqui, nesta sala. Afastou-se de mim flutuando e pela janela se foi, e um vento impetuoso agitava a orla do seu paletó; sem olhar para trás alçou voo para bem longe, até virar um ponto negro acima do horizonte branco. Me fixei neste pensamento inútil, porque somente ele sabia trazer à realidade os efeitos dos seus sonhos e desmaios.
Wellington Amâncio da Silva é Membro do corpo editorial da Utsanga — Rivista di Critica e Linguaggi di Ricerca (Itália/ISSN: 2421-3365); da comissão editorial do Academic Journal of Interdisciplinary Studies (MCSER/ISSN: 2281 3993) e da comissão editorial do World Journal of Education and Humanities (Scholink/ISSN: 2687-6760). Revisor/avaliador da Revista de História da UEG; estre em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Especialista em Ensino de Filosofia (UCAM); Graduado em Pedagogia e em Filosofia (UNEB; Metodista).
