A PALAVRA, por Guilherme Azambuja Castro

A

Acabara o expediente e eu ia caminhando com a minha câmera fotográfica. Vi uma casa abandonada e achei estranhíssimo, qualquer empreiteira daria uma fortuna por ela. Bem, ali havia uma, e um casal de cisnes no pátio de cimento. Eram estátuas. O cisne maior, em algum momento da sua vida de pedra, erguia um pescoço orgulhoso. Agora ele estava quebrado e por isso olhava nos olhos do outro. Um filho, um amante? Atrás das grades – era um abandono protegido – enquadrei a fratura e o amor.

Não eram seis da tarde, havia luz e a calma do bairro vizinho ao meu. Prédios novos, assépticos, sem história. O bairro terminava no topo de uma colina. Subi sem tirar fotos, sem desejar. Ao longe se via o morro da televisão, e ruas sinuosas descendo até um parque.

Caminhava rente a um muro vivo, mas logo ele se transformou em tapume de empreiteira. Ouvia-se barulho de demolição atrás dele. Por uma fresta vi duas casas geminadas, ou o que restava delas – cliquei e, enquanto ia andando, me lembrei deste sonho: eu no apartamento onde moro, mas em ruínas. Não há mais paredes inteiras. Procuro um espelho e não encontro. Minha ex-mulher liga. Atendo, “alô?”. Ela diz “não é de um espelho que precisas, mas de uma janela. Procura logo uma para fechar, não vê, está chovendo granizo!”. E estava mesmo chovendo granizo.

Surgiram outros muros, num deles havia o grafite de duas cadeiras vazias. Teriam sido das casas gêmeas? Um traço às vezes reto, obediente às margens; às vezes circular, selvagem, libertário. As patas voltadas para fora, uma forma antiga de cadeira. Era noitinha, precisei manter o obturador aberto por mais tempo e não tremer as mãos.

Tinha agora três fotos: os cisnes amantes, as casas demolidas, as cadeiras vazias.

Fui andando.

Lá embaixo o parque era desses que uma empreiteira toma conta. Reconheci o lugar. No último inverno comprei lenhas de um homem que estacionava ali seu ônibus adaptado para carregar achas. Havia duas pessoas se exercitando no lugar do ônibus.

O parque era permeado por calçadas. A que peguei se bifurcava em seguida. À direita, chegava-se a um lugar alto, próximo à saída; à esquerda eu não sabia aonde ia dar e optei por esse. Meus sapatos escorregavam, o clima andava úmido desde o granizo.

Vejo, então, uma árvore caída no meio do caminho. Embaixo dos galhos há uma bolsa marrom, de lona. Dou uma pisadela em cima. Ela cospe uma porção de papeizinhos, que vão se depositando no chão, um a um. São manchetes de um caderno de esportes. Alguém recortara não só o jornal, mas também frases. “A paixão pelo futebol” tornava-se “A paixão” – foi ela que se depositou sobre o meu sapato. Peguei-a, fiz uma bolinha e coloquei no bolso.

O corte no tronco não parecia de ação humana, mas era semelhante ao pescoço fraturado do cisne. Cliquei a bolsa sob os ramos da árvore. Os papeizinhos soltos também entraram no enquadramento. Aí percebi que estava só no meio do parque, e já era noite.

Em casa, requentei o almoço e pus a mesa na cozinha. Servi um vinho de uma garrafa já aberta. Sentei para comer e me embriagar um pouco. Enquanto jantava, baixei para o computador as imagens. Retoquei a saturação das cores primárias nos cisnes. Aumentei o contraste nas sombras das casas e no grafite das cadeiras. Dei zoom nos papeizinhos que a bolsa expelira, mas as luzes do parque não deixavam ler o que diziam. Aí me postei à janela e fiquei ali, olhando o bairro e bebendo. Sob a luz da lua, os guindastes pareciam coisas inofensivas. Se minha ex-esposa ligasse no sonho daquela noite, pensei, eu diria que enfim encontrara uma janela para fechar.

Acordo cedo para o serviço. Quando desço para tirar o carro da garagem, levo o lixo para fora: o seco, do plástico azul, em uma mão, e o orgânico, do preto, na outra. Hoje, ao colocar a calça na máquina de lavar, recolhi o recorte e joguei no lixo seco. Ali estava ele, através do plástico azul. Peguei a câmera e enquadrei o saco, o nó bem feito, parte da área de serviço, e a palavra. Dei um zoom nela. A foto não mostra o que vinha antes, porque desejei retirar; nem depois, porque não me deram o direito de saber. Ficou assim, “paixão”, sem dizer no interior de quê sufocava.

Guilherme Azambuja Castro (Santa Vitória do Palmar/RS) é formado em Direito e doutor em Escrita Criativa pela PUCRS. Publicou em coletâneas de contos e em revistas literárias. Foi vencedor do 21º Concurso de Contos Luiz Vilela em 2011. Em 2014 foi finalista do Prêmio SESC de Literatura na categoria Contos. Foi vencedor do Prêmio CEPE de Literatura, categoria Contos, em 2015. Autor de O amor que não sentimos e outros contos (CEPE) e Topografias da Solidão (Zouk). Foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura em 2016.

FICÇÃO

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