ANA CLARA UM DIA VAI MORRER, por Luciano Prado
Entre meados de julho e os primeiros dias de agosto Ana Clara comemorou seu aniversário e decidiu que queria morrer.
Quinze anos recém feitos, não houve festa nem abraços. Nenhum parente ligou para marcar a data e as poucas amigas que tinha sequer postaram juras de amor nas redes sociais. Ao entardecer daquela sexta-feira de frio seco, olhando da varanda do apartamento o céu alaranjado feito as gemas de ovo que tanto prezava no café da manhã, ela teve um marcante diálogo com a única pessoa que ainda lhe dava ouvidos: sua mãe. Marcante pois intenso mas nem por isso agradável. Tal interação ocorreu em meio às panelas que eram batidas vigorosamente nas sacadas e varandas do bairro enquanto o presidente da república fazia um pronunciamento em rede nacional. Ana debruçou-se no parapeito da janela e irritou-se com tudo, com todos e com ela mesma. Sentiu que, não importando os detentores da razão, o clima oprimia e um soluço engasgado bem no meio do peito gerava-lhe uma necessidade de gritar em direção ao céu agora esmaecido, coisa que não fez por pura vergonha dos vizinhos. Abandonou a janela dando as costas para a pintura à óleo do pôr-do-sol e passou num rasante pela sala de estar aonde a tevê mostrava um tétrico colosso em uma pose impávida, a fala num tom empolado e raso, por mais paradoxal que tal combinação possa aparecer.
– Genocida do caramba… – desabafou sua mãe enquanto a filha bufava em direção ao quarto fazendo questão de marcar os passos com solavancos firmes e sonoros batendo os calcanhares no parquê a cada toque dos pés no chão.
Dona Solange virou-se assustada com tamanha raiva exibida e agarrou-lhe um dos braços na passada perto do sofá:
– Opa, opa, opa! – exclamou a dona de casa. – Aonde você vai desse jeito? O que aconteceu?
Ana Clara se desvencilhou da mãe e respondeu, o corpo já novamente direcionado pro quarto:
– Me deixa… cansei dessa merda toda.
– Mas o que é isso, Ana? – surpreendeu-se Solange – Isso lá é jeito de falar comigo?
Ninguém mais lembraria do que foi dito dali em diante mas sim do efeito que a discussão rápida teve nos ânimos envolvidos. Solange esbravejava de lá, Ana emudecia de cá e o discurso isolado da mãe pedindo modos e respeito à filha ressonava dentro da cabeça da menina ao passo que os derradeiros raios de sol atravessavam o apartamento de encontro ao seus olhos claros, o que dificultava a tarefa de não traduzir o aperto no peito em lágrimas. Sentia-se uma represa prestes a um desastre emocional de grandes proporções. Em pouco tempo a rispidez superou a busca por sentido e palavras foram cuspidas de um lado e de outro, o coração de ambas acuado em meio ao tiroteio de argumentos. Solange acusou Ana de faltar com respeito e insinuou que toda a tempestade armada no copo d’água que era aquele apartamento tinha origem nos remédios que a filha andava tomando por conta. Destacou seu desalento apertando com força as cartelas metalizadas que ficavam na prateleira ao lado da porta da filha, a essa altura já estavam as duas emboscadas num ringue imaginário limitado pela porta do recinto e a parede repleta de fotos e embalagens de remédios. Uma das fotos estampava o falecido pai da garota num sorriso franco. Ele falecera havia alguns anos e agora se transformara numa inusitada testemunha daquela agressão verbal entre as duas mulheres que tanto amara.
Ana Clara repassou em segundos todo os comos e os porquês da mãe insistir em marcar o que eram estacas de apoio ao seu real sofrimento como as causas imponderáveis de um mal crônico que lhe sufocava. Estacas medicamentosas, apoios químicos, mas acima de tudo: auxílios. Decidiu não escancarar tamanha fragilidade mesmo que fosse para Solange, mesmo que fosse para acabar com o conflito. Na verdade talvez porque fosse acabar com o conflito.
– Tu se prevalece porque teu pai não tá mais aqui! – gritou a dona de casa já não segurando o choro, o braço estendido apoiado na parede do quarto como que auxiliando o corpo a não se entregar.
Ana Clara poderia ter aproveitado a chance para encerrar de vez a discussão, ventilou a consciência com o fato de os ânimos estarem acirrados pelo planeta afora e com a imagem nada agradável da própria mãe chorando à sua frente, a derrota de um laço sanguíneo em sua forma mais doída. Mas lembrou das panelas batendo, das amigas que não lhe deram parabéns, do pai morto pelo Coronavírus e uma opressão surda foi subindo pelo lado de dentro da garganta, o pescoço num espasmo agudo como se o coração criasse mãos e as direcionasse para cima a fim de estrangular o corpo que lhe abrigava.
– É por causa desses remédios que só ele não tá mais aqui! Era para eu estar lá com ele… dá pra entender? – esbravejou a menina transformando em epílogo o que podia ter sido um ponto final e esvaziando o que tinha preso na garganta em forma de palavras e que agora voavam e levavam o rosto da mãe para um extremo além do trágico.
Atingia-se um ponto sem retorno aonde os próprios tons de vozes poderiam assustar os moradores do prédio, mas quem ligava naqueles dias estranhos com as pessoas se agredindo na casa ao lado? Era um cenário pateticamente assimilado como recorrente e inevitável, no caso específico da mãe e filha era um contexto extremo numa série de agressões escalonadas que ao invés de encontrarem algo macio que as absorvesse eram amplificadas como as panelas na vizinhança.
– Sabe do que mais? – mirou Solange no fundo dos olhos da filha com uma exaustão que suplicava um desenlace. – Pega essa foto do seu pai e diz pra ele voltar… mentaliza com força e diz que eu topo trocar de lugar com ele. No fim das contas é o que tu quer, né? É o que vai resolver todos os problemas do mundo, não é isso?
Numa sequência de atitudes previsíveis mas nem por isso menos avassaladoras Ana Clara agarrou bruscamente a foto do pai na prateleira acima dos remédios. Levou-a ao peito com raiva e bateu a porta do quarto no momento em que Solange recuou o suficiente para encarar sozinha o corredor de volta à sala vazia, agora imersa num silêncio mórbido. A sinfonia perfeita para um evento infeliz.
A mulher de cabelos brancos só teve tempo de suspirar mais uma vez antes de enxugar as lágrimas e recobrar um tanto do orgulho. Pegou o controle remoto e desligou a tevê, atirando-se em seguida no sofá e aceitando a derrota como toda mãe faz ao oferecer o corpo e absorver o baque endereçado ao filho: numa sensação de morrer cumprido.
No mesmo instante Ana Clara jogava-se na cama e pedia para morrer naquela noite. A foto com a cara sorridente do pai permaneceu amassada em sua mão até o sono vencer a desesperança e o rosto enterrado no travesseiro relaxar pela primeira vez nas últimas horas.
As panelas pararam de soar no momento em que a primeira estrela surgiu no céu e foi neste átimo que um dos tantos pedidos suplicados naquela noite foi atendido e o curso de duas fortes mulheres pegou um desvio.
Entremeados ao morno pedaço da face que ficara horas apoiado sobre o colchão enquanto dormia os cabelos desgrenhados de Ana Clara a lembraram, ao se olhar no espelho, o que a memória traz à tona todo começo de dia: a possibilidade de um recomeço. Ela então ajeitou como pôde o cabelo e decidiu que queria viver.
O que são quinze anos de idade não celebrados, afinal, perto da preciosa convivência com a mãe? Não teve dúvidas nem titubeios em relação aos laços que deveria reatar ou às desculpas que devia prestar à Solange. Não ligou para o sentimento estranho que ainda lhe oprimia o peito, agora mais uma vontade genuína de chorar do que um desespero incipiente, mas ainda assim uma sensação calcada em um vazio existencial cinza e triste. Ao olhar pela janela do quarto estranhou a manhã abafada em contraste com o frio da noite anterior. O sol que espreitava entre os prédios do horizonte era de um amarelo brilhante, quase translúcido. Saiu de seu quarto e adentrou o banheiro do cômodo em meio a bocejos. Esta transição foi pontuada por uma observação atenta do tapete do corredor já que não se lembrava da mãe ter comentado sobre uma mudança do utensílio e este, antes emborrachado e de coloração vermelha, agora destacava-se por um verde vivo e felpudo. Ana sorriu com o próprio raciocínio, tanto em relação à temperatura do dia quanto ao tapete do chão. Lembrou que, não obstante a sua falta de atenção rotineira para tais detalhes decorativos, a inconstância meteorológica de sua cidade era a regra. Afastou-se do recinto após lavar o rosto e atravessou rápido pela sala de estar aonde a tevê ligada num volume modesto exibia o ex-presidente da república, recém libertado da prisão, a bater no peito e afirmar com arrogância que não havia ser mais honesto do que ele. Pedante pela própria natureza.
– Mas que baita mentiroso… – sussurrou ela balançando a cabeça em desaprovação enquanto sons oriundos da cozinha do apartamento sinalizavam que alguém também já levantara e estava a lidar com suas tarefas matinais, como de costume.
A menina entrou suavemente na peça tomada por um aroma de café e pão, um pé lentamente atrás do outro ao caminhar para não irritar Solange. O pedido de desculpas principiava com uma calculada aproximação. Para sua surpresa a mãe não estava ali e sim um homem, sentado de costas para a porta e passando com leveza manteiga num pedaço de torrada.
Ana Clara pulou assustada de volta à sala num movimento brusco e sonoro, o que fez com que o indivíduo a percebesse.
– Já acordou, filha? – disse o sujeito sem virar o corpo ou tirar os olhos do prato à sua frente. Achei que ia dormir um pouco mais.
A menina levou ambas as mãos ao rosto tapando a boca num susto angustiado:
– Me deixa ir, por favor… pega o que tu quiser daqui, leva minhas coisas, dinheiro… mas não faz nada comigo.
– Mas como assim, Ana? – perguntou o estranho virando o rosto finalmente em direção à menina. – Isso lá é jeito de falar comigo?
Alguém poderia lembrar mais tarde do quão difícil foi manter em pé a pobre moça que, naquele instante, desatou a chorar e amoleceu as pernas de emoção ao se dar conta que a pessoa à sua frente era seu falecido pai. O semblante feliz e tranquilo do homem aplacava a emoção fulminante que inundara o corpo de Ana e a voz grave que havia pedido modos à filha agora se transformava em risos. Modos eram apenas pequenas parcelas do que ela desejava dar a ele naquela cozinha, ela desejava dar-lhe o mundo se pudesse. Explodiu em novas lágrimas (agora de alegria) enquanto corria em direção ao pai e lhe abraçava com força, o cheiro de café misturado ao do cabelo do homem penetrava-lhe as narinas revitalizando sua alma. Fernando acusou a filha de estar lhe pregando uma peça e pediu para que encerrasse o ato naquele momento, do contrário começaria a ficar realmente preocupado. Reforçou o pedido segurando a filha pelos ombros e olhando-a fundo nos olhos com seriedade.
Ana Clara piscou os olhos uma porção de vezes e esfregou o cabelo grisalho à sua frente com vigor numa busca física por provas de que o que acontecia ali não era invenção de sua cabeça. Puxou da memória o que lembrava da fisionomia do pai quando o viu pela última vez e concluiu que algumas coisas haviam mudado. O cabelo estava mais ralo e as bochechas mais proeminentes, ao redor dos olhos a pele envelhecida também tinha aumentado de volume e comprimia o olhar terno de Fernando que sorria em silêncio ao passo que a filha o examinava, agora às gargalhadas.
– Do choro ao riso em segundos, Ana? Até parece que tu não me vê faz um século! – exclamou o homem já não escondendo apreensão, a mão carinhosa repousada sobre a face da filha como que lhe transmitindo um cuidado há muito perdido.
Ana Clara poderia ter vivido para sempre naquele espaço de tempo, cogitou paralisar a existência como quem tira uma fotografia e ficar até o fim de seus dias naquela cozinha. A imagem mais do que agradável do semblante do pai iluminada à sua frente. Mas lembrou da mãe, da discussão da noite anterior e dos impropérios cuspidos. Um calor ameno foi lhe subindo pelo pescoço e a garganta trancou numa espécie de choro deglutido pois surgia a clara noção de que, se aquilo era um sonho, ela acordaria para ver a mãe e isso significava despedir-se novamente do pai.
– É por causa da mãe que tu está aqui, né? Nós discutimos ontem, eu pedi para que tu voltasse e agora tô aqui neste sonho… o pior de tudo é que eu não quero acordar, pai… – a garota visivelmente abalada tinha transformado as risadas num muxoxo conformado que, em contato com os olhos de Fernando, gerou uma distensão pacífica no rosto envelhecido do homem.
Atingiam, pai e filha, um ponto naquela conversa em que as vozes poderiam mascarar os reais desejos de ambos, mas quem se importava com o som das palavras quando essas não traduziam o que se tentava dizer? Era um sopro demorado em meio ao vendaval instalado naquele apartamento. No caso particular dos laços afetivos, refeitos agora e simbolizados num terno abraço, era um ponto final, um encerramento que Ana Clara não desejava.
– Sabe o que é o pior, filha? – indagou Fernando olhando a emoção estampada no rosto da filha como quem vê no espelho a sua própria existência a sofrer. Bem que eu queria que isso tudo fosse um sonho… eu entendo, faz pouco que sua mãe se foi por causa deste maldito vírus e a gente demora pra se acostumar, às vezes o dia nos acorda e é mais fácil negar o que aconteceu… mas vai dar tudo certo. No fim das contas temos um ao outro, não?
Num desenrolar de gestos abruptos mas nem por isso descabidos Ana Clara correu de volta ao quarto à procura da foto do pai. Observou a peça iluminada pelo sol e deu-se conta da prateleira que guardava as fotos das amigas. O aparato, antes de madeira, agora exibia-se reluzente e feito de um metal brilhante. Passou os olhos pelo teto, pela cama e paredes, tudo havia mudado. A guarda da cama, antes estofada, agora era rígida, feita de uma madeira plana e escurecida. As paredes outrora amarelas estavam pintadas de um verde escuro. A epifania trágica culminada no olhar direcionado novamente ao tapete do corredor que lhe chamara a atenção ao acordar. Uma porção de movimentos sem volta em direção à constatação de que aquela não era mais sua vida mas uma versão desta às avessas. Só que o avesso da tristeza pode ser igualmente triste, triste como o rosto da mãe numa foto isolada na prateleira que Ana agora fitava com desânimo.
O pai, agora abandonado no meio do caminho entre a sala de estar e o quarto da filha, só conseguiu frear todo o ímpeto que lhe invadia incitando-lhe a correr até a menina e lhe abraçar. Pegou o controle remoto e desligou a tevê, sentando lentamente numa das cadeiras da mesa de jantar anexa à sala e lamentando que a vida houvesse levado cedo demais a sua esposa e estivesse levando demasiado tempo para fazer a filha entender que algumas coisas que partem não voltam.
Neste mesmo segundo Ana Clara ajoelhava-se no chão de seu quarto e pedia para a mãe voltar. Agarrada com força à foto de Solange ficou ali, o peito encostado nos joelhos em um corpo que se encolhia sobre si, retorcido, como uma criança que retorna ao ventre materno. As mãos segurando a fotografia contra a testa que apertava o carpete.
O choro parou de verter quando um princípio de sorriso alargou-lhe os lábios gerando uma vontade de respirar sem medo e uma sensação de que nem todo o pedido precisa ser atendido para que o curso da vida seja colocado em perspectiva.
Basta um vírus e uma noite mal dormida.
Luciano Prado é porto-alegrense, este conto faz parte da (ainda inédita) coletânea Vida Per Capita.
