BRINCADEIRA DE CRIANÇA, por Maximiliano da Rosa

O desafio veio rápido: num instante eu estava quieto no meu canto, assistindo a um desenho animado idiota na tevê. No seguinte, me encontrava diante do meu quase melhor amigo, me esforçando para não parecer apenas um menino. Mandei-o procurar outro para encher o saco. No entanto, ele não me ouviu e ainda falou que eu estava era com medo. Tentei me defender dizendo que não tinha medo de nada. Claro que era mentira, mas fiz como meu pai tinha me ensinado. A mentira tem perna curta, ainda que seja algo necessário, o importante é mostrar na mesma hora que você não é menos que ninguém. Que ninguém é menos que ninguém. Ele disse: se é assim, vai e faz. Meu pai também costuma dizer isso, se quer alguma coisa vai lá e faz, não espere pelos outros. Minha mãe, por outro lado, não diz nada, só fica olhando e concordando com tudo o que o meu pai fala. Ele é policial militar; ela, professora primária na escola onde estudo. Meu pai faz o tipo “policial durão”. Todo mundo tem medo dele. Já minha mãe está mais para Madre Teresa de Calcutá do que para Joana D’Arc. Acho que ela não devia ser assim, o mundo passa por cima de quem é bom demais. Isso é outra coisa que meu pai me diz. Por isso, quando o Felipe apareceu lá em casa e pediu pra ver a pistola automática dele, disse pra ele não me encher o saco. Muitas vezes é preciso muita coragem para dizer não a uma pessoa ou situação. Adivinha quem me ensinou isso? Meu pai, claro. Meu herói. Que pra mim não precisa ter superpoder nenhum. O Batman, por exemplo, não tem, tem é outra coisa muito melhor: dinheiro, e quem tem dinheiro na vida tem o maior poder de todos. Compra quase tudo. Compra mais que casa, carro, roupas de marca, compra principalmente as pessoas. E sendo dono das pessoas se é dono do mundo. Palavras do meu pai, ouvi uma vez ele dizendo isso pra minha mãe. Meu pai não tem dinheiro. Tem uma arma. Por isso ninguém se mete com ele. Tanto que é o único policial do bairro que anda fardado por aí. Os outros, por sua vez, vivem esgueirando-se pelos cantos, saem de casa com a farda escondida numa sacola, e quando precisam lavá-la, não botam pra secar no varal, medo de que os bandidos descubram que naquela casa mora um PM. Passam seus dias numa espécie de clandestinidade, se escondendo, como se fossem eles os criminosos. Esses caras não tem fibra. Têm medo, e ter medo é ser fraco. E ser fraco é pedir pra morrer. E ninguém quer morrer. Todo mundo quer continuar vivo por mais que a vida não seja fácil, às vezes. Perguntei pro meu amigo se ele tinha certeza de que queria ver mesmo a arma do meu pai. Ele disse que sim. No fundo o Felipe tem inveja de mim porque o pai dele não era como o meu. O cara vivia sempre bêbado, e raramente trabalhava. Na verdade ele não era o pai verdadeiro do meu amigo, era só um cara que se juntara com a mãe dele. Uma vez ele bateu nela, e um vizinho veio aqui em casa chamar meu pai. Então ele foi lá e botou a arma na cabeça do cara e avisou que se ele batesse na mulher outra vez, ia colocá-lo junto com outros cinquenta caras igual a ele numa cela onde caberiam no máximo uns vinte, e o esqueceria lá por muito tempo. Aí ele ia ter de comer em pé, cagar em pé, dormir em pé, rezar em pé. Esses argumentos bastaram para convencê-lo a nunca mais encostar um dedo na mãe do meu amigo. Isso quem me contou foi o Felipe, que viu tudo de perto. A mãe dele é uma mulher bonita. Mais que a minha, até. E mais jovem também. O seu nome é Raquel. Ela era modelo, e uma vez participara de um programa de televisão, um reality show. Depois de ser eliminada, posou pra uma revista masculina, nua. Ganhou uma boa grana. Virou celebridade por um tempo. Deu entrevistas na tevê, participou de programas de auditório, apareceu numa novela. Mas depois arranjou um namorado, um ator iniciante que torrou todo o dinheiro dela, e após engravidá-la, sumiu, foi morar na Europa ou nos Estados Unidos, alguma coisa assim. Esse é que é o verdadeiro pai do meu amigo. Por causa dele, ela caiu em depressão, tentou se matar cortando os pulsos, começou a faltar aos desfiles e sessões de foto. Acabou que nunca mais foi convidada pra nada. Para sobreviver, virou sacoleira. Minha mãe é uma das clientes dela. Então tá, perguntei outra vez pro meu amigo: quer mesmo ver a arma do meu pai? Ele respondeu: quero, já disse mil vezes que é isso que eu quero. Vamos fazer um acordo, eu disse, você me mostra a revista onde aparece a tua mãe pelada e eu mostro a arma do meu pai. Felipe pensou um pouco. No fim, acabou concordando. Ele queria ver a arma logo, até parecia uma obsessão, mas eu disse: não, primeiro você me traz a revista. Ele fez outra proposta: vamos lá em casa, você leva a arma, e eu te mostro a revista. Falei que eu não podia tirar a arma de casa, meu pai ou minha mãe podiam descobrir. Foi nessa hora que Felipe me chamou de cagão, e quis saber se eu não era valente e durão igual ao meu pai. Se era isso que ele realmente pensava, eu tinha que provar o contrário. Para ganhar tempo e pensar melhor perguntei se a revista mostrava tudo. Tudo, ele disse. Tudo?, perguntei de novo. Eu já disse, tudo. Fazia tempo que eu queria ver a revista. O colégio todo queria. Uma vez rolou até a estória de que a mãe do Felipe tinha feito um filme pornô. Mas nunca se soube se era verdade. Tudo bem, foi a minha vez de concordar, espera aqui, vou lá no quarto buscar. Peguei minha mochila escolar, coloquei uns cadernos dentro pra disfarçar, fui ver onde a minha mãe estava. Encontrei-a no quintal estendendo as roupas que acabara de lavar. Ela olhou pra mim e perguntou aonde eu ia. Vou estudar na casa do Felipe, falei. Não demora, ela disse. Tá, eu disse. Fui até o quarto dos meus pais, subi na cama, e peguei a pistola automática do meu pai em cima do roupeiro. Ela ficava guardada dentro de um estojo preto aveludado. Deixei o estojo no mesmo lugar, assim ele não daria falta de nada. Da janela dava para ver a minha mãe pendurando as roupas no varal. Ela estava de costas pra mim. Por um instante pensei que fosse se virar e me pegar em flagrante delito. Enfiei a arma rapidamente na mochila e saí correndo, coração aos pulos, passei pela sala e disse ao meu amigo, que estava atirado na poltrona assistindo aquele mesmo desenho animado idiota: anda logo. Pegamos nossas bicicletas e pedalamos à mil. Chegamos, respiração ofegante, coração acelerado. A casa do Felipe é maior e mais bonita que a minha. Os móveis são mais novos, a tevê é maior, o computador é melhor que o meu. Fomos direto ao seu quarto. Larguei a mochila sobre a cama, ele pediu: deixa eu ver. Puxei o zíper, abri a mochila e peguei a arma. Toma cuidado, falei, está carregada. Larguei na mão do meu amigo. Seus olhos brilharam de fascinação. Ele a examinava como um ourives faria com uma joia rara. Sei bem como é isso. Lembro claramente o dia em que a vi pela primeira vez. Meu pai estava sentado na cama, lustrando-a com uma flanela. Eu era pouco mais que um menino. O que primeiro me chamou atenção foi o brilho do metal cromado. Ela era linda. Ao me ver, meu pai a escondeu rapidamente atrás de si. Perguntei o que era aquilo. Ele disse que não era nada. Perguntei se era um brinquedo e ele disse que não. Depois me pegou no colo e me pediu para prometer que eu ia crescer, estudar e virar um doutor. Como eu não entendia nada direito, nem sabia que era um doutor, prometi. Enquanto o Felipe examinava a arma, pedi para ir ao banheiro. Ele disse, vai, você sabe o caminho. Sim, eu já tinha estado ali várias vezes, fazia tempo que a gente se conhecia. Desde a terceira série que a gente estudava junto. E já estávamos na sétima. Caminhei pelo corredor. A porta estava entreaberta, ouvi o barulho do chuveiro. Pensei logo em dar meia volta. Devia ser a mãe dele no banho. Uma ideia me passou pela cabeça. Eu nunca tinha visto uma mulher nua, ao vivo. Só em revistas e em filmes que a gente baixava na internet. Estaria ali a minha oportunidade? Se quer uma coisa vai lá e faz, lembrei das palavras do meu pai. Que ver revista que nada, se eu podia vê-la de perto. Avancei sorrateiramente, empurrei a porta, entrei. O ambiente estava todo enfumaçado por causa da água quente. Olhei em direção ao box e o que vi me paralisou por um instante. A mãe do Felipe estava atrás do vidro embaçado. Mas não estava sozinha, tinha um homem com ela, os dois colados um no outro, vi que ele a pressionava contra o vidro, ela tinha uma perna erguida, que ele segurava com uma das mãos. Dava para ver o desenho de uma borboleta tatuada em suas costas, perto do ombro, e a marca de biquíni sobre a pele loura e bronzeada. Fiquei alguns segundos olhando aquela cena, fascinado, os dois se movendo devagar, sem pressa. Ela gemia baixinho. Com medo de que me vissem saí correndo, voltei pro quarto do Felipe. Quando entrei ele segurava a arma com as duas mãos, apontando na minha direção. Perguntei o que ele estava fazendo, ele respondeu: brincando de polícia e bandido. Eu sou a polícia, você é o bandido, disse. Isso não é brinquedo, falei. Ah vai dizer que nunca brincou de dar tiro? Me dá isso, ordenei, ríspido. Sem me dar importância, ele continuou com aquela brincadeira estúpida: mãos ao alto senão eu atiro, e apertou o gatilho. Cheguei a levar um susto, quase caí pra trás. No entanto, logo me dei conta de que a arma estava travada. Ele começou a rir. Eu não achei graça nenhuma. Pulei em cima dele, arranquei a arma das suas mãos, peguei minha mochila, e saí correndo. Eu estava próximo da porta da frente, quando ouvi uma risada. Olhei em direção ao corredor. Vi a mãe do Felipe sair do banheiro absolutamente nua, secando os longos cabelos louros. Ela paralisou ao me ver. Instantes depois apareceu o homem que estava com ela. Olhei para ele, ele olhou pra mim. Eu o conhecia, era o meu pai. Ele ficou imóvel, me olhando. Parecia querer dizer alguma coisa. O seu olhar correu em direção à arma em minhas mãos. Eu devia ter ficado com medo, e no início até fiquei. Porém logo percebi que havia algo mais em minhas mãos além daquela pistola, agora eu era dono de um segredo, e acabava de ganhar uma espécie de superpoder. Calmamente, guardei a arma na mochila, abri a porta, e antes de sair, sorri para o meu pai, que não sorriu pra mim.

Maximiliano da Rosa é natural de Novo Hamburgo e tem 48 anos. Participou de diversos concursos literários e obteve alguns prêmios e menções honrosas. Entre os mais recentes, está a classificação entre os finalistas do Concurso Contos da Quarentena (2020), do I Concurso Literário Escryba (2021). Tem poemas e contos publicados em diversas antologias literárias. Em 2020 publicou seu primeiro livro, a coletânea de contos “O Land Rover Negro e a Caixa de Drops”.

FICÇÃO

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  1. Bem natural e cotidiana, essas linhas possuem o poder de prender a atenção do leitor com um final surpreendente. Gostei por não ser trágico e por manter a linha realista desde o início ao fim.

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