CONTOS DE RAZÃO E ABSURDO, por Marcia Ivana de Lima e Silva

Leia a seguir um dos contos
presentes no livro, Quarto 5.

Em A Casa de Estudantes, Magali Lippert nos brinda com contos que montam um quadro dos moradores da casa de estudantes da Universidade Federal em Porto Alegre, mas que podem representar o cotidiano de qualquer casa de estudantes. As histórias são contadas tanto por um narrador onisciente, quanto pelos próprios habitantes em primeira pessoa, perfazendo o período de março de 1992 a dezembro de 2018.

Partindo da experiência de moradora, Magali apresenta 29 contos, organizados em 29 quartos, cujas temáticas giram em torno das experiências da faixa etária universitária: relacionamentos amorosos, primeiras experiências, política estudantil, assombrações (verdadeiras ou imaginadas), interesses de estudo, as quais transformam pessoas simples em personagens complexas. São histórias vividas e inventadas, que recuperam trajetórias possíveis, num momento de grande efervescência social e cultural, de descobertas importantes, a começar pela política estudantil, passando pelas pesquisas especializadas que a universidade proporciona.

A potência dos contos foi reconhecida pela Editora Folheando, de Belém do Pará, promotora do Prêmio Uirapuru 2021, que concedeu aos originais a honraria de publicação, que nos proporciona a satisfação da leitura deste livro, que nos faz viver junto com os moradores as tocantes histórias na casa de estudantes.

“Pode essa Casa da Razão também ser do Absurdo? Padecemos de uma razão invertida nesse recinto contraditório entre superstição e ciência?”, questiona o morador do Quarto 3. As perguntas são lançadas como enigma ao universo, mas também como provocação ao leitor, que compartilha da mesma dúvida até o “Pós-escrito” e fecha o livro com a sensação de também ter sido um ator no palco das narrativas, de também ter morado na casa de estudantes.

Quarto 5
Setembro/2004

Meu quarto na Casa de Estudantes era um quarto de fundos, ficava no terceiro andar e tinha uma vista que, por um motivo que logo ficará evidente, me agradava: o Hospital de Clínicas da Universidade. Havia movimento dia e noite; pessoas entravam e saíam do hospital; médicos e enfermeiros bem-vestidos circulavam pelo estacionamento.

O prédio, que abrigava centenas de pacientes, era uma bela construção retangular de onze andares, enviesado, pintado de azul e branco. Sobre o hospital, um antigo morador de meu quarto comentou que viu um homem se jogar do décimo andar. Ele soube, depois, que era a ala psiquiátrica do hospital, e que um paciente descontrolado, em um surto psicótico, conseguira, com as próprias mãos, rasgar a tela de proteção da janela.

O ser humano é capaz de coisas surpreendentes: do lado de cima, profissionais da área de saúde colocam doentes mentais no décimo andar de um prédio, do lado de baixo, a força imensurável de uma descarga de adrenalina em outros mais doentes do corpo.

Mas meu lado escritor já devaneia, minha intenção era outra, o que eu queria, ao comentar sobre o hospital, era só descrever o movimento, a circulação de pessoas pelo local. Falando em lado escritor, por aqueles tempos eu vinha aprimorando meus textos, mas nada que eu considerasse realmente notável. Eu queria ser imortalizado, eu precisava escrever melhor do que os autores que eu lia, desejava superá-los, era minha obsessão, dar asas a uma dicção purista e superar o meu acanhamento linguístico, enfim…

Eu não gostava de escrever à noite, minhas aulas eram pela manhã e eu preferia dedicar-me à literatura à tarde quando a Casa estava vazia, à noite a balbúrdia que os moradores faziam me desconcentrava completamente, aliás, comportamento estranho para os meus colegas da Casa: como assim não dormir com a sinfonia cotidiana da vida, barulhenta em essência? Em meus ouvidos e na minha literatura deveria ecoar, apenas, a ruidosa carne viva dos pacientes do hospital.

Eventualmente, quando o sono não vinha, ou depois de uma cochilada seguida de insônia, eu me dedicava a algumas leituras e tentava escrever alguma coisa, na maioria das vezes sem grande sucesso. Então, apoiava-me na janela e ficava olhando o movimento do hospital: o silêncio e o escuro do quarto iluminado, apenas, por um abajur na escrivaninha, rendiam alguns versos, de bons insights, mas que se tornavam fracos no conjunto de um poema, e mais fracos ainda na possível coletânea necessária para um livro, enfim, um não poeta!

Distrações à parte, havia tido uma semana de razoável produção literária, mas meu pai vinha me pressionando para que eu arranjasse um estágio ou emprego. De nada servia uma formação universitária sem alguma experiência, dizia-me ele, e eu via o sonho de me tornar um eminente escritor cada vez mais distante.

Minha insistência em continuar me dedicando às Letras fez com que meus pais cortassem minha mesada, que já não era grande coisa, mas me sustentava e sobrava o suficiente para comprar alguns livros. Meu pai me acusava de vagabundo, insinuava que eu estava usando drogas, minha mãe desviava alguns trocados que só impediam que eu passasse fome. Na verdade, eu sabia que era hora de me sustentar sozinho, mas sabia também que faltava pouco, muito pouco para que eu tivesse a grande epifania. Alguns escritos eu até havia organizado em livro e mandado para um grande concurso literário.

Eu ia me tornar o maior escritor de todos, para que minha família realmente tivesse orgulho de mim e nunca mais viessem à tona aquelas histórias… das minhas crises…

Certa noite, entre aqueles dias, fui dormir tenso e com a boca do estômago gritando; sentia-me pressionado. Demorei a adormecer e acordei com dores na mandíbula de tanto apertar os dentes, o silêncio era absoluto, mas entrava uma forte claridade pela janela, espantado olhei no relógio e ainda eram duas horas da manhã, deveria estar escuro! Abri a janela e o sol estava alto, talvez meu relógio digital estivesse atrasado. Olhei para a cama do Zeca, meu colega de quarto, e ele não estava lá! Perdi a aula, pensei, Zeca estudava à tarde e já tinha saído! Como é que ele não me acordou? Talvez tenha pensado que eu não me sentia bem, enfim…

O mais estranho é que parecia que eu dormira pouco, desci até a cozinha comunitária, no andar térreo, para preparar alguma coisa para comer, decidi fazer um café, afinal, eu recém acordara. Não cruzei com nenhum colega pela casa, o que não era totalmente incomum, pois os que não estudavam à tarde faziam estágio ou tinham bolsas de pesquisa na própria Universidade.

Com alguma curiosidade, notei que o relógio de parede marcava duas horas e quinze minutos, ora, era um relógio analógico, não possuía treze, quatorze, quinze horas… mas marcava o mesmo horário de meu relógio de pulso digital, que seguia, aparentemente, funcionando! O silêncio permanecia absoluto.

Tomei tranquilamente o café e subi para o quarto. Abri o laptop para começar a escrever sobre um assunto que vinha matutando, olhei desinteressadamente para o horário que marcava na barra de tarefas do computador, duas horas e trinta e sete minutos; duas e não quatorze horas: mesmo horário que marcava meu relógio de pulso digital! Percebi, enfim, que havia algo de estranho… Aproximei-me da janela e, pela primeira vez nos dois anos que eu estava naquele quarto, não havia viva alma entrando ou saindo do hospital, ninguém circulava, ninguém entrava em carros no estacionamento.

Sim, não havia dúvidas, não eram nem três da manhã ainda! Mas onde estavam todos?

No céu azul o sol brilhava como se fosse meio-dia, havia algumas poucas nuvens, não se ouvia nada, nenhum canto de pássaro, nenhum latido de cão. Os carros no estacionamento pareciam abandonados, sem seus donos, sem os seguranças que andavam por ali dia e noite. Tentei pensar em algum motivo para aquele deserto de pessoas, não havia, não lembrava de nada que fosse anunciado na televisão ou nos jornais: greve geral, ameaça terrorista ou invasão alienígena.

Tornei à cozinha para ver se encontrava alguém pelo caminho: ninguém. Onde se enfiara o Zeca às três horas da manhã? Mesmo com sol alto? O que todos sabiam menos eu? Saí batendo nas portas dos quartos, nada, nenhum sinal de vida. Subi até o terceiro andar, peguei minha carteira e o celular, o telefone estava sem nenhum sinal da operadora; tentei a internet, também não. Tranquei a porta do quarto e decidi sair à rua, precisava entender o que estava acontecendo, que estranho cataclismo tinha varrido de uma metrópole todas as pessoas?

Andei cinco quarteirões, nada, ninguém, nenhum som. Pensei em pegar um ônibus e ir até o centro, mas… que ônibus? Havia alguns, parados nos corredores, vazios, sem passageiros e sem motoristas.

Meu Deus, o que havia ocorrido? Minha fronte latejava, pensei em meus pais e na minha irmã mais nova, estariam bem? Em um impulso que seria de irresponsabilidade não fosse a situação excepcional, acerquei-me de um carro, verifiquei que estava com as chaves na ignição e pus-me a dirigi-lo. Não tinha carteira de habilitação, nem sabia dirigir direito, mas já havia observado muitos motoristas, providencialmente podia dirigir por cima de calçadas e nos corredores de ônibus. Dei a arrancada no carro e logo eu já o dominava.

Eram exatos duzentos e vinte e cinco quilômetros até São José, a pequena cidade em que meus pais moravam. Em todo o percurso não encontrei ninguém, passei pelos campos, normalmente com gado, nada, nenhum animal. Sentia fome, um pouco antes de entrar na cidade verifiquei que faltava combustível. Parei em um posto de gasolina, abasteci sozinho, entrei na loja de conveniência servi-me de salgados e doces, provavelmente do dia anterior; abasteci o porta-malas do carro com bebidas e comida e segui para a casa de meus pais.

Às seis horas e trinta minutos da manhã, aproximadamente, cheguei à residência de minha família, o sol não mudara de posição desde que eu acordara. Desesperado, invadi a casa que conservava a porta fechada, apenas, na maçaneta. Percorri todos os cômodos e não os encontrei, gritei por eles com todas as forças que tinha, e nada. Chorei o choro de quem perde tudo. Que terrível acontecimento sucedeu-se enquanto eu dormia?

Desolado, sem conseguir compreender o estado das coisas, olhei para as árvores que se impunham majestosas, a grama ardia de tão verde, as flores exalavam um perfume que há muito eu não sentia, eram os únicos seres vivos além de mim. Por um minuto me ocorreu que fossem elas as responsáveis pelo extermínio da raça humana, a vingança da natureza contra o homem. Essa bobagem só não me fez rir porque eu estava demasiado fraco e triste.

Entrei na casa da minha infância, agora sem vida e sem memória, em um silêncio que se eternizaria, como todo o resto. Fui até o quarto que havia sido meu, estava tudo como eu deixara. Tirei os sapatos, deitei-me na cama, faltavam dois minutos para as sete horas, horário em que, normalmente, disparava o despertador do meu celular anunciando que eu devia me vestir para ir à aula.

Deixei-me cair sobre a cama, cansado, em alguns segundos adormeci.

Acordei sozinho neste lugar de paredes verde claro, com grades na janela. Daqui avisto a Casa de Estudantes e a janela aberta do quarto 5. Imagino que mesmo com uma descarga de adrenalina não conseguirei romper essas grades. Depois do suicídio do tal cara os gestores deste hospital resolveram tomar essas providências.

A única pessoa que entra aqui é uma mulher gorducha de uniforme azul marinho. Disse que é uma honra cuidar de mim, que adora meus escritos e que, quando as crises passarem, ficarei espantado de ver como minhas histórias fazem sucesso.

Marcia Ivana de Lima e Silva é professora do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisa criação literária, com ênfase em Crítica Genética. Coordena o acervo de Guilhermino Cesar.

ENSAIO

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