CORDEIRO MÍSTICO, por Rosario Lázaro Igoa
Tradução de Paulo Damin.
Sua única visita coincidiu com a lua cheia. Me lembro de procurá-lo com os olhos pelo campo inundado de branco, de tentar identificar sem êxito seu corpo maciço entre os eucaliptos e as touceiras de rabo-de-raposa. Em certo momento da noite, da janela alta, cheguei a distingui-lo cruzando o alambrado devagar, como se não estivesse fugindo de si mesmo, e o vi enfiar-se na área do mato nativo, perto das vacas e das ovelhas que dormiam por lá, agrupadas e em paz. A luz tênue da lua dava um tom de irrealidade ao que estava acontecendo, uma nota precisa de aderência do ser à imensidade do cosmos. Consigo recriar a luminosidade exata daquela noite, eu despertando com um ruído apressado e notando que o sofá estava vazio, levantando-me e descendo a escada, chegando até a porta, pela qual se filtrava o frio, para fechá-la e, então, tentar encontrá-lo ao redor da casa àquela hora da madrugada, por trás da janela que me protegia.
Vi sua expressão decomposta assim que ele desceu do táxi que o trouxe do povoado. Nos abraçamos na varanda e lhe disse para entrarmos, que estava frio demais para ficarmos a céu descoberto. Os ombros para a frente, o peito afundado, ranhuras profundas na testa, rechonchuda e tudo. Ao redor, como o teto de um cenário, essas estrelas obstinadas do sul, que parecem espetar o céu com uma determinação dolorosa. Entramos e lhe indiquei que deixasse a mochila sobre um banco. Ele não me olhava nos olhos nem deixava que eu capturasse os seus, exaustos. Sem pena, que era o que ele queria, perguntei se queria tomar algo:
– Tem grapa? – disse displicente, para responder alguma coisa, e se sentou no meio do sofá da sala, que horas depois seria sua cama.
Continuava vestido com a jaqueta, apesar de dentro de casa o calor da estufa ser perceptível.
– Não, não tenho grapa.
– Então um chá, o que tiver. Que calor que está aqui dentro – murmurou, mas não tirou a jaqueta.
De fato, os vidros estavam embaçados. Na noite anterior tinha caído uma forte geada que recém havia se dissolvido, por volta do meio-dia. Tudo indicava que se repetiria naquela noite. Coloquei água para ferver. Depois misturei um pouco de marcela com cidró que eu tinha em uma floreira na cozinha. Enquanto esperávamos que saísse vapor da chaleira, ele olhava a casa em que nunca tinha estado antes. Se detinha em cada objeto, em cada quadro, como se fosse um ladrão decidindo o que roubar. De tanto em tanto, fazia um movimento brusco com o pescoço, não sei se para se livrar de uma contratura ou para acabar arrumando outra. Não perguntou nada, mas esperava que eu fosse obtendo as respostas que desde algum tempo ele queria me dar.
– E por que tu foi embora?
– Enchi o saco. Sempre me encho, mas dessa vez me enchi um pouco mais. Fazia meses que eu estava trabalhando mais de catorze horas por dia. Uma merda de trampo, sempre lá, atento a uma máquina que só se movimenta quando a gente mexe nela. Tu que trabalha em casa e não sabe o que é entregar teu sangue pra alguém.
– Bom, isso depende do ponto de vista – respondi à provocação, mas ele não me escutou.
– Cansaço. Puro e simples. No fundo, como sempre, só quero que me deixem dormir – reivindicou então, com uma raiva rangente.
– Tu quer voltar? – perguntei, ignorando o último comentário e com o deliberado propósito de não cair na armadilha da culpa.
– Eu nunca quis trabalhar lá, pra que voltar?
– Não sei. Pergunto por via das dúvidas, vai que tu já tivesse te arrependido – falei e decidi não continuar perguntando.
Eu, que segundo ele tinha dormido eternamente em paz, que encontrava na noite o momento da entrega e da rendição, “não era capaz de entender o desespero do insone”. Isso ele tinha me gritado uma vez, ao ponto de eu bater nele. Meu pai nos separou antes, mas não pronunciou aquelas palavras mágicas com que, durante a infância, queria encobrir todos os nossos desacordos e ciúmes: “Os irmãos devem ser unidos, essa é a primeira regra”. Já era a época em que papai estava doente, ligado a um tanque de oxigênio como um astronauta, e o cérebro da nossa mãe começava a se despedaçar. O velho fez um esforço monumental para nos separar e quase caiu no chão, tentando segurar o corpo inflado do meu irmão. O filho, que soube cuidar dos dois até o final, deixou que o acalmassem. Eu, ausente, distante em outro país, vinha a cada tanto para tentar organizar um caos deformado, com cheiro de humano em decomposição, e não era capaz de me dar conta de que ninguém me permitia intrometer-me naquela comunhão de seres.
Fiquei em silêncio por medo de destapar aquele poço em que, desde que éramos capazes de recordar e, sobretudo, desde a morte de nossos pais, acabávamos caindo sempre. Por um momento, nossos olhos se cruzaram e, embora pareça impossível, não o reconheci, como se de repente tivesse alguém mais no seu lugar ou, pior, como se ele não fosse ele mesmo, ou nenhum de nós o fosse. Esquivo, desviou o olhar e voltou a pousá-lo em minha casa. Passava tudo em revista, sem pudor. Ficou por um longo instante detido em uma escultura que tinha sido do nosso avô paterno. Esperei que ele recriminasse algo, o que não ocorreu.
Daquele rosto estranho e por demais familiar, que dissecava tudo que nos rodeava, então, pude observar a papada quase esponjosa, a passagem do tempo, a separação irremediável. Éramos velhos e órfãos. Além disso, como se se tratasse de um ajuste de contas, eu tinha perdido o sono ingênuo e várias noites entrevia o desespero do insone, como ele quisera vaticinar. Não lhe comentei isso, em uma tentativa soberba de evitar compartilhar o mal comum que agora sim nos assombrava.
– Me dá um crivo? – perguntou de supetão.
– Não tenho. Parei de fumar.
– Ué.
– Acontece – falei e me dei conta do atrevimento do gesto.
– Como parar em uma família de fumantes tão, tão devotos?
Eu ia responder que perdendo o sono, mas não queria compartilhar essas intimidades que ele sempre tinha deixado expostas. O cabelo preto, nos mesmos caracóis que o acompanhavam desde bebê, lhe caía sobre os ombros com um monte de caspa ao redor. Se lhe viam os dentes e os dedos manchados de amarelo, os olhos opacos, o nervosismo de quem espera com fanatismo pelo próximo cigarro.
A derrotada era eu: posso dizer que não esperava nada, naquela altura. Me pus a fazer uma sopa, que alguma coisa precisávamos comer.
Anos antes, ele tinha me visitado na Bélgica. Estava em um bom momento. Dormia de noite e inclusive roncava. Saía de dia para passear pelos museus. Falava com as pessoas e ia invariavelmente ao bar. Conheceu uma mulher, como fiquei sabendo no dia em que saí do meu quarto e os vi agarrados sobre o colchão da sala. Eu tinha que entregar um trabalho para a bolsa com que eu tinha ido até lá, por isso não me inteirei o bastante de suas andanças. Um fim de semana depois de entregar o trabalho, e justo quando a chuva deu trégua, propus que pedalássemos 70 quilômetros até Gent. O dia estava nublado e quente, incomum para fins de setembro. Saímos cedo com comida nas mochilas e subimos em umas bicicletas enferrujadas. Passamos por caminhos vicinais, banhados, junto ao rio Schelde durante todo o tempo. Em determinado momento, tivemos que pegar uma balsa minúscula para cruzá-lo. O capitão parecia conduzir o Pequod. Ao chegarmos na outra margem, fomos envolvidos pela névoa e, por um momento, apareceu um frio viscoso, pouco veranil. Meu irmão pedalava à frente, eufórico, sem dar bola. Eu estava muito cansada e queria me atirar do lado da estrada. Mas nossas bicicletas seguiram avançando pelos campos cultivados, as plantações de maçãs verdes, por subúrbios cheios de agropecuárias, até chegar nas ruas dos imigrantes, reconhecíveis pela quantidade de cartazes coloridos, pelas ofertas de combos de kebab, batata e refrigerante.
O centro histórico de Gent demorou para aparecer, como também demorou para sair o sol, que surgiu entre as nuvens por volta do fim da tarde, inundando a cidade com uma luz ocre e também rosada, iluminando o rio e também as fachadas das casas em escadinha, algumas delas torcidas, as igrejas de torres altíssimas, os vidros sobre os canais. Nesse mesmo céu, um pouco depois apareceu a lua, mas antes tínhamos ido até a entrada da Catedral de São Bavão, onde prendemos as bicicletas. Só ele entrou para ver o retábulo da Adoração do Cordeiro Místico, do qual ele vinha falando desde o princípio da viagem. Eu o esperei fumando na porta e, vendo que demorava, decidi comprar uma bandeja de batatas-fritas e duas cervejas em uma lancheria. Meu irmão saiu da catedral com uma expressão que eu não conhecia nele. Parecia hipnotizado. Lhe dei uma das cervejas e abri a minha. Parei de caminhar e tomei um gole. Era leve e perfumada. Respirei. O curioso foi que ele, que sempre ria da minha incapacidade de beber e caminhar ao mesmo tempo, não fez a piada de sempre, a do meu atabalhoamento, mas seguiu absorto pela influência do retábulo.
– Tem um jorro de sangue saindo do peito do cordeiro – contou aos borbotões, abalado. – E o animal está em outra. Um monte de gente com trajes de gala ao redor e o cordeiro impávido, como que dizendo que consegue aguentar. Tu não faz ideia do que é a luz, a paisagem perfeita, os detalhes… A gente chega a ver os dedos dos pés de alguns dos fiéis.
Pela veemência, achei que ele fosse contar algo mais sobre o retábulo, sobre as seis tábuas, sobre aquela que eu sabia que era uma réplica, porque tinham roubado a original, mas não, não continuou me contando porque eu devia ter entrado na catedral e pagado o par de euros que custava o ingresso para ver o famoso cordeiro. De repente, como se tivesse planejado, como se toda a visita fosse um preâmbulo, ele disparou:
– Tem sempre alguém que paga pelos outros – disse então meu irmão com rancor, com vontade de fazer sair um jorro de sangue do meu peito, até que eu me dessangrasse a seus pés, como correspondia à justiça divina.
Fiquei aturdida, aniquilada. Nunca esperaria aquele comentário, ou sim. O certo é que ele tinha me enfiado a faca até o fundo das tripas.
Caminhei a seu lado sem escutar o que ele seguia dizendo. Talvez não tenha dito nada mais, impossível sabê-lo. Em seguida me sugeriu que sentássemos na esplanada de Korenlei, inclusive me puxou pelo blusão para que eu o fizesse. Naquele momento, estava rindo de alguém, como sempre. Um grupo de turistas gritava alguma coisa que ecoou contra os edifícios e o rio. Com voracidade, ele comia uma batata atrás da outra. Para não olhá-lo e para que ele não notasse as lágrimas que me nublavam os olhos, eu focava na disposição das torres ao longo do espaço que a vista conseguia abarcar. A lua chegou pouco depois, escalando entre aqueles edifícios e construções desviadas. Acho que estava cheia. Na verdade, não é que importe. O que sim recordo, assim como recordamos essas coisas das quais só uma lhes dá uma transcendência especial, é que aquele dia comecei a sentir, com espanto, o quão longe estávamos dos irmãos que tínhamos sido uma vez. E que isso não mudaria mais.
Por tudo isso me surpreendeu quando ele ligou para pedir que eu o hospedasse por algumas semanas. Comentou que fazia vários dias que não dormia, que estava desesperado. Lhe disse que sim, claro, que havia lugar na cabana e que era bem-vindo.
– Pode ficar o tempo que quiser.
– Viu? No fim vou ir te ver de novo – ele disse, atribuindo à sua vontade de não ter me visitado até aquele momento um peso que não tinha havido para mim.
Durante a janta, nenhum de nós se esforçou para manter uma conversa. Quando terminamos a sopa, descasquei duas laranjas e lhe ofereci uns gomos. Não lavou a louça, foi direto para o sofá.
– É aqui que vou dormir,
– Sim, mas espera que te dou um lençol – respondi, embora ele já estivesse deitado, com os sapatos inchados sobre o apoio dos braços.
Aquela noite na cabana o escutei, hora após hora, resfolegar no sofá. Era uma peça única e, apesar de a sua cama estar no andar de baixo, perto da estufa, e a minha no mezanino, não havia maneira de se ausentar. Compartilhávamos assim a incapacidade de conciliar o sono, mas ele não o sabia. Eu não queria fazer barulho, demonstrando que estava acordada também. Já tinha perdido a esperança de dormir quando, de repente, o escutei se levantar do sofá, caminhar no piso de madeira, abrir a porta e sair para a rua.
Passaram alguns minutos. Senti o frio aumentando no andar de cima, sinal de que ele havia deixado a porta aberta. Desci a escada e vi que ele tinha ido embora. A estufa já estava desligada e a luz da lua entrava copiosamente pelo janelão. Fechei a porta e fiquei olhando por trás do vidro. Embora não quisesse que ele me visse acordada, eu tentava encontrá-lo, com medo do que poderia acontecer, se é que já não havia acontecido. Os pastos pareciam cobertos de neve, de tão brancos, e a lua suspendia o vale que descia na direção do mar. Capciosa, sua luz deixava em evidência tudo o que a noite guarda para si no resto dos dias. Se viam os caraguatás, como aranhas, os rabos-de-raposa imóveis, esperando a geada, e o mato nativo, do outro lado da cerca, uma zona escura apesar do esbanjamento de luz sobre o campo. Lá dormiam as vacas e as ovelhas. Meu irmão estaria escondido por ali, pensei para me tranquilizar, mas em seguida o vi, ou me pareceu vê-lo, cruzando a cerca lentamente. Levou segundos eternos para fazê-lo.
Depois, ao chegar do outro lado, o do mato, parou para olhar na direção da casa. Não sei que expressão ele tinha, nem se se importou ao me ver acordada àquela hora, atenta a ele, o fugitivo. Não me escondi. De alguma maneira, eu queria pagar por todos, queria lhe tirar esse privilégio. Ficamos um tempo nos olhando, de longe, até que ele, talvez satisfeito, ou talvez pensando em outra coisa, deu meia volta e correu para o mato nativo.
Paulo Damin é nascido em Caxias do Sul, RS, em 1986. Escritor, tradutor e professor. Formou-se em Letras pela UFRGS e tem mestrado e doutorado em Estudos da Tradução pela UFSC. Em 2015, publicou o romance Estudo de causo e, em 2021, a novela Adriano Chupim (ambos disponíveis na amazon.com.br). Participou da coletânea de contos da Revista Sepé, em 2022, e escreve crônicas para o portal silvanatoazza.com.br
Rosario Lázaro Igoa é uruguaia, tradutora e escritora. Coeditou e traduziu do português a antologia Crónicas de melancolía eufórica, de Mário de Andrade (2016); do inglês, traduziu Dinosaurios en otros planetas, de Danielle McLaughlin (2020), entre outros. Publicou o romance Mayito (2006) e vários contos em antologias coletivas. Pela editora Criatura, publicou as coletâneas de contos Peces mudos (2016) e Cráteres artificiales (2021). Este último recebeu, em 2022, o Segundo Prêmio Nacional de Literatura do Uruguai.
