De ‘DESVARIOS ENTRE QUATRO PAREDES’, por Cassionei Niches Petry
Primeiro capítulo do romance Desvarios entre quatro paredes,
de Cassionei Niches Petry, Editora Bestiário.
04/04
já vivo em confinamento atrás das paredes da minha biblioteca há muito tempo, nesse trabalho de escritor de quinta categoria que vende histórias para quem não sabe escrever histórias e quer publicar seu livro para ser vendido para os amigos e parentes, em noites de autógrafos com direito a foto na coluna social no jornal, nada de página de cultura, ou para aqueles que querem vender em e-book, com capas apelativas, homens sem camisa, mulher atrás abraçando o cara, ou então autobiografias, ou biografias mesmo, em que uso pseudônimo, enfim, meu nome nunca aparece, e nem quero, até porque nada do que me pedem eu escreveria, muito menos com a pressa que pedem, literatura é arte e arte não tem pressa, mas assumo que estou com pressa agora, o mundo anda devagar, parado, o vírus é que corre, está atingindo o primeiro mundo, Europa, EUA, o que será que vai fazer aqui no terceiro ou quarto mundo, nessa país que está ou sempre esteve ao deus-dará e ainda dizem que é abençoado por deus, o que prova que ele não existe, só há um deus e ele é Beethoven, Cioran estava errado, não é Bach, e esse deus era surdo como parece que é o deus que abençoa esse país, que não atende às preces, orações, como a dos ridículos jogadores de futebol, que levantam as mãos para o alto pedindo pra vencer a partida e quando ganham dão primeiramente glória a deus, mas depois, quando perdem, não mandam esse deus se fuder, ouço deus agora, o “Beto que não ouve”, sei, foi péssima, mas ativo um aplicativo no celular com risadas que eu aciono toda vez que falo sozinho uma piada para mim mesmo, ouço o Beto porque tenho pressa, talvez eu morra, então ouço todas as obras dele pelo selinho amarelo da DG, que baixei, pirateado, claro, da internet, já faz mais de dez anos, os arquivos salvos em dois DVD’s, coisa já antiga, mas impensável quando eu era aquele guri que queria ser alguém na vida e tinha outros deuses que não eram o Beto, alguns deles morreram de overdose e o que cantou que seu heróis morreram assim morreu de AIDS, a epidemia da época, se proteger do quê, pensavam, se proteger pra quê, pensam hoje, ouvindo seu deus que está na presidência que diz que não tem que se proteger, eu estou me protegendo, do vírus e desse deus deles, ou daquele que fala no nome do deus deles, aqui na minha toca eu sou deus, observando o mundo pela tela do computador, vendo como as criaturas, “assim como são as pessoas são as criaturas”, dizia meu tio nos churrascos da família, aquele tio do é pavê ou pra comê e do é pacu grande e pacu pequeno, vendo, enfim, como as criaturas estão se fudendo no mundo e mesmo assim não largam suas crenças, o papa lá, sozinho, rezando para um deus morto e todo mundo nas redes sociais dizendo ó que lindo, esse papa é top, não é pop como o outro, mas também não poupa ninguém, como a chinesa que ganhou um tapa porque tentou segurar o papa, o tapa do papa, dizem que aí houve a ira da chinesinha e veio o vírus, vai saber, “Deus sabe o que faz”, é um conto que li há pouco, do Luiz Vilela, que é assim, como esse texto, sem ponto, porque Luiz Vilela também é deus e sabe o que faz, aliás, é o deus do diálogo, e aqui eu sou deus, então eu sei o que eu faço, também li outro conto do Luiz Vilela em que um sujeito cava uma toca, vira um tatu, mistura de dois contos de Kafka, outro deus, e como eu sou deus aqui na minha toca, que eu batizei com esse nome justamente por causa do conto de Kafka, “A construção”, como eu dizia, já que sou deus aqui, troco o Beto por outro Beto, não vou dizer o nome dele, vai que seus advogados me processem, eles processam até escritório de advocacia que tem seu nome, mesmo que o advogado tenha o nome dele, ele processa biógrafo, parece um processo kafkiano, mas enfim, redescobri esse Beto na quarentena, o cara é, ou era, bom, na virada dos anos 60 para os 70, letras, linhas de baixo, bateria, ele não é deus, mas é rei, e quem é rei nunca perde a majestade, mesmo que faça coisas ruins depois, como as músicas que falam de deus, ah, mas ainda havia nas capas umas fotos fumando cachimbo, quem cachimba tem meu respeito, o cara canta que queria ter um carrada de amigos e eu tive pelo menos um, que já morreu e me deixou como herança dezenas de discos e uns do Beto, que estou ouvindo agora, “som do vinil, o seu chia do é bom”, lembrei do Ed, vou ouvir depois, o sobrinho do cara que ensinou o Beto a tocar violão, ou ensinou o amigo e parceiro de composições do Beto, não lembro mais, está no filme sobre o tio, o Tim, do Ed, o Ed que na capa e contracapa do seu disco também fuma cachimbo, assim como no encarte do CD do Belchior ele aparece fumando cachimbo, outro deus pessoal que eu tenho, e cheguei bem perto dele quando estava sumido, sem saber, estive próximo da casa em que ele morreria algum tempo depois, sim, ele se escondeu na minha cidade, aqui é um esconderijo bom, por isso me escondo nes sa cidade, e vejam outra coincidência, o Beto também gravou Belchior, descobri há pouco tempo nessa redescoberta do rei, uma música que tem parceria com Fagner, que não tem capa com cachimbo, mas tem uma fumando cigarro, outros tempos, aliás, o Fagner musicou muitos poetas, Cecília Meireles, que lhe rendeu um belo de um processo, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Affonso Romano de Sant’Anna, Florberla Espanca, Ferreira Gullar, esses dois no disco que tem o Fagner fumando, Belchior musicou poemas de Drummond e recheava de referências literárias suas letras, ah, quantas referências ecoam aqui na toca, do popular ao erudito, por que também não posso usá-las?,

Cassionei Niches Petry é professor e escritor, autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (2012), “Cacos e outros pedaços” (2017) e dos romances “Os óculos de Paula” (2014), “Relatos póstumos de um suicida” (2020) e agora “Desvarios entre quatro paredes” (2023). Mantém o blog “Uma biblioteca na cabeça” (cassionei.blogspot.com).
