De ‘EMOVERE’, de Celso Rodrigues

Os poemas integram o livro Emovere,
publicação de 2022 da editora Dialogar.

DEPOIS DO FUTURO

ainda não sei bem
como funciona
essa tal realidade
pois sigo provisório
uma angústia no lado esquerdo
uma vontade do passado
de estilhaçar a vidraça
diante de todos os presentes

me disseram que tudo é possível
pelas mãos da tecnologia
inventar o homem, vencer a morte
mas me advertiram
que morrer de fome é inevitável
na distopia da modernidade

anunciam o grande demiurgo
virá o inevitável progresso
e com ele farelos e sucrilhos
para alimentar os filhos
mas os somente nascidos
depois do futuro

FOME

Assim em fragmentos
não entendo esse Estado de Direito
já posso morrer no limite da lei
encontrar a dignidade da pessoa humana
nos acorrentados das viaturas

Em meio aos direitos garantidos
vicejam escarros, nojos diversos
em prazos a eles assegurados
O horror em sua hermenêutica
mata os homens sem fazê-los morrer

morrem os mesmos das mesmas mortes
nas mesmas correntes de sempre
a jurisprudência e seus senhores
mostra o futuro no cemitério dos vivos

OUTONOS

Escrevo pouco
os dias são injustos,
penso,
hesito,
multiplico-me
em infinito
obscuro

há vezes
inúmeras
bebo
um deus taciturno

e dele não posso
extrair
segredos
nem segundos

a injustiça
não se aplaca
e sigo para o medo

há vezes
nefastas
que não vejo
que a dor inexata
se disfarça em desejo

DUAS PONTES

As flores últimas que me cercam
As espadas e milícias que fenecem
As raízes restauradas pelo tempo
as fúrias que adormecem

Versos dos meus invernos
Em meio a domingos felizes
poemas em que estremeço
no inventário de cicatrizes

como se eu perdoasse Saturno
pudesse comer da sua mão
falasse com deuses noturnos
em idiomas de amplidão

a possibilidade do horizonte
sem temor, sem alarde
entre duas pontes
onde o nunca, nunca é tarde

PAI

em meu pai, depois de meu pai
no pai que sou, de que sou feito
no leito culto em que a vida se trai
eu trago o indulto ao meu pai

meu rancor se evade
no terno gesto, num afago
com suave ardor invade
aquele que comigo trago

um fardo, um luto
vinte e cinco anos num cinema
uma flor que desato
inverno eterno de um poema

Celso Rodrigues é portoalegrense nascido em 1963. Sociólogo, Bacharel em Direito e Doutor em História pela PUCRS. Professor, ao longo de três décadas lecionou em diversas escolas privadas e faculdades de Direito de Porto Alegre. Coordenou o Projeto Direitos Humanos na Prisão, presente nas prisões gaúchas por mais de uma década, e cujas atividades, voltadas para Educação, acesso à Justiça e Direitos Humanos, são desenvolvidas pelo Instituto Pensar, do qual é diretor. É pai de Vinicius da Silva Rodrigues e sempre esteve interessado em amar e mudar as coisas, como aprendeu com Belchior. Emovere é seu primeiro livro de poesias. 

POESIA

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