DE ‘IBERÊ CAMARGO: UM HOMEM VALENTE’, por Nilma Lacerda
Lançado em 2022, “Iberê Camargo: um homem valente”, de Nilma Lacerda,
parte das telas mais marcantes e também dos textos memorialísticos
e ficcionais deixados por Iberê para recriar a sua trajetória.
É o primeiro volume da coleção Tipos Raros, projeto da Editora Mínimo Múltiplo
e traz prefácio de Adriana Calcanhotto, texto de orelha de Silviano Santiago,
apêndice de Lucas Colombo, pintura da capa feita por Theo Felizzola
sobre fotos de Luiz Eduardo Achutti
Voltei à minha Restinga depois de uma longa ausência, fui visitar o Buraco Fundo. Estava mais fundo, mais desolado. Saí dali, fui a Santa Maria. Outro buraco me esperava por lá. A Escola de Artes e Ofícios, em que estudei na minha juventude, tinha pegado fogo. Que tristeza, uma escola pegar fogo! Quantos risos ainda se propagam pelos corredores, quanto futuro não se escreveu ali, e tudo isso fica subitamente arruinado pelas chamas. As paredes enegrecidas, escadas devoradas, os pedaços suspensos no ar. Os tetos cheios de falhas, o andar de cima aparecendo por entre os rasgos na madeira. Não quis ver, não quis ouvir mais nada. Fui para o hotel, saí dali no primeiro ônibus da manhã seguinte.
No peito de cada homem, um buraco fundo faz o seu trabalho. Outra frase feita. E verdadeira. A escola comida pelo fogo não sai da minha cabeça. Sonhei com isso a viagem inteira até Porto Alegre. Conto meu sonho a Euclédio:
– Um inferno, Euclédio, era mesmo o inferno.
Ele não parece dar a devida atenção, enfatizo:
– O inferno de verdade, o fogo no teu rabo é um inferno de verdade, não são palavras de efeito.
– O certo é dizer incêndio.
Ignoro a correção dele, o inferno me consome. A necessidade de tudo passar para a pintura, de ver e pensar nas cores, nos traços, para representar o que experimento. Por que não vejo simplesmente como todo mundo? Maria não tem necessidade de pintar o que vê. O que vê e sente fica no coração ou na cabeça dela. Verdade que houve um tempo em que também ela queria pintar, e então… Então – nunca me perguntei as razões – parece que ela deixou de sentir o que eu continuei a sentir. Sinto, e preciso tirar de mim. Logo em seguida, o ciclo continua. Um inferno. A história de revirar nos tachos com pez fervente pela eternidade.
– Não nos damos conta e é o inferno que preferimos, Euclédio. Veja você: apareço dentro do incêndio, vi desde o início o fogo crescendo no porão, sentia o calor nos meus pés, e não conseguia fazer outra coisa senão rodar que nem peru atrás do telefone para chamar os bombeiros. Ia haver uma explosão, o fogo estava quase alcançando as latas de tinta empilhadas num canto, meus pés viravam milho de pipoca numa chapa quente, e eu insistindo em querer chamar os bombeiros, quando o mais sensato era fugir, correr dali para o mais longe possível. No entanto, eu corria em roda, perguntando a um e a outro qual era o prefixo telefônico do local para chamar os bombeiros, ninguém sabia, e acabei voltando pela enésima vez à sala da direção para ver se encontrava alguém que pudesse ajudar, e quando ouvi o primeiro estrondo é que me dei conta que isso era uma completa imbecilidade, que deveria ter fugido e providenciado, fora, a ajuda necessária.
– Uma imbecilidade mesmo, e pela primeira vez nesses últimos dias Euclédio concorda comigo.
– Sonho é assim mesmo, nele acontecem as imbecilidades que a gente está para cometer na vida e não consegue enxergar. Se estivesse num incêndio de verdade, ia tratar de salvar a pele, sairia gritando pelas escadas e corredores, fogo! fogo! fogo!, que se danasse o pânico.
– Não sei, não. Você gosta dessa sua fantasia de Zorro – Euclédio é sarcástico, ainda por cima encontrou não sei onde um pedaço de camurça preta que vai amassando, apertando, amoldando, para me dar ao fim um arremedo de máscara. Gostaria de fazer com ele como faz comigo, escarnecer, zombar, xingar, corno, aleijado, cego. Cego?
– E não me chame de cego, não sou eu que estou pondo a cabeça no cepo.
– Como agradam a você os trocadilhos. Trocadilhos infames, como esse, digo com raiva.
– A gente podia voltar a falar da terra, da terra que tem no chão do Inferno…
Esse diabo sabe ser conciliador. Não quero saber de conciliações.
– Não precisa, eu já sei – é o que digo.
Chego até a janela, uma das maneiras que tenho de dar a conversa por encerrada. Em geral, Euclédio entende, diz boa-noite com toda a educação e um pouco de desdém, desdém que faz questão de não esconder. Mostro então que percebi, sim, eu sei que ele me despreza quando termino a conversa antes do esperado, mostro a ele que percebi o desdém, é a senha para que levante os ombros, resmungue só para si algo que posso adivinhar o que seja.
– Sei, Euclédio, sei que achas que minha alma cede à covardia, boa noite, já te contei meu sonho, já alimentei nós dois.
Alimentei e tenho fome. Tenho susto. Estou dentro do sonho, agachado no chão, preso às línguas de fogo como passarinho ao olho da serpente. Línguas de fogo. Postas sobre mim, me dariam o dom de falar em línguas? Os bombeiros me entenderiam melhor? Falando em línguas, eu saberia por fim o número dos bombeiros? De qualquer maneira, eu agora me atormentava. Conseguiria me salvar? Sairia a tempo? Saí a tempo, antes da explosão? Ou é um toco queimado que está falando a Euclédio, pensando que é um homem, considerando que ainda é vivo? Como na história dos membros amputados que ficam a coçar na pessoa muito tempo depois, posso ser a memória do homem que eu era? Meto os dedos na tinta, Euclédio me pôs branco e preto na mão. Branco e preto. Gris. A tela está cheia de gris. Tem alguém preso.
Euclédio me passa amarelo, vermelho. As chamas brilham no gris.
Vontade de passar uma rasteira na morte. Soltar quem está preso neste incêndio.
– Só na tua paranoia é que não passas uma rasteira – Euclédio me traz de volta do meio das chamas, ele sempre intrometido, sempre oportuno.
É melhor fingir que não ouvi:
– Uma escola pegar fogo, que tristeza – e em seguida, sem o tempo nem de uma respiração, digo o que não esperava dizer: – Crianças. Se um incêndio cozinhasse elas todas!
Uma gargalhada rouca e poderosa, vai ser ouvida pela rua inteira.
– Que ogro aqui, bem na minha frente! – fala Euclédio, quando consegue parar de rir.
Derramo minhas queixas. Paciente, ele me aconselha a expulsar todas aquelas crianças de casa. Não posso, você sabe, digo a ele, por causa da garota.
– Ela te enche a casa de gente porcalhona e barulhenta. Manda todo mundo embora. A casa é tua.
Falo a Euclédio do que me tem assustado tanto esses dias, o medo de não poder mais pintar. O barulho e o cheiro da criançada maldita amarram as minhas mãos.
– Estou ficando imobilizado, imobilizado, você entende? – grito para Euclédio. Os vizinhos vão bater na minha porta pelo barulho que estou fazendo.
Ninguém aparece, é uma gente de sono pesado.
– A garota não vai entender, Euclédio, e depois ela não aprende, você sabe. As crianças voltariam logo.
Meu parceiro me aconselha a assustar as crianças, mantê-las à distância. Pergunto a ele o que fazer com a tristeza de Jimena, ele me diz:
– Pinta o labirinto. É dentro dele que estás – acrescenta e me estende um tubo de verde-gaio, alegre e enganador. – É para os olhos do Minotauro – diz.
Empurro a mão dele. Tenho vontade de recomeçar a briga, e desisto. A mão pesa de abóboras, oranges, terras, garanças. As chamas enroscam-se no corpo do homem como trepadeira brava em volta do pau velho na construção abandonada, tão forte essa trepadeira, o homem desce por ela ao inferno. Euclédio se mete na minha frente, joga roxo sobre meus abóboras e meus oranges, sobre os meus terras e os meus garanças. O homem, quase uma barra gris misturada às grades derretidas, ganha azul, ganha glória e realeza, vai se suspendendo, como se o corpo fosse uma escada.
– Viu o que você fez? Está satisfeito agora? De quem é o quadro, afinal, pergunto, olhando bem nos olhos dele. Ficamos em silêncio um bom tempo. Na verdade, não me espanto com o que ele fez. Balanço a cabeça, resignado: – Então tu também pegas no pincel, também pintas, e não assinas o quadro – digo.
Tomo do branco, amortalho o homem.
Escuto a porta bater. Sozinho e tendo que atravessar a noite. Vou ao banheiro, encontro escrito sobre os azulejos brancos “Teu norte é o vermelho-cardeal, na crista de um pássaro morto”.
– Euclédio, sua puta velha! – grito com fúria, lambuzo de preto as letras vermelhas.
Um formigamento vai tomando conta do meu corpo, um vazio vai ocupando meus ouvidos. O mundo parece esquecido, meu corpo todo está esquecido. Enxergo uma aranha enorme, peluda, na minha frente, são muitas as patas peludas, umas dezesseis patas se agitam na minha frente, deixam na tela azuis, rosa, vermelhos, grises. Um crepúsculo. Um crepúsculo na campanha, o horizonte de nunca da campanha. Nunca é muito tempo, alguém me disse uma vez, este céu é de chumbo, esta merda de céu, só vai ficar uma nesga clara, uma nesga de vida neste crepúsculo que cava a noite dentro da carne, uma noite de nada, uma noite sem tempo, uma vida de espera da noite sem tempo.
Crepúsculo da Boca do Monte. Três figuras aguardam a noite. Qual delas espera o trem, se propõe viajar? Qual delas tem a coragem de desafiar a morte, jogar uma partida com ela, porque não lhe reconhece o poder, é capaz de se debruçar sobre o pássaro morto e esperar que se levante?
Entre os poucos segundos em que se acredita que o pássaro caiu como cai todo mundo, ralou uma canela ou um joelho, o joelho do pássaro é um graveto que raspou na lixa do cimento, só isso, pode-se botar mercurocromo e ele sara, entre aqueles poucos segundos e esses outros, infinitos, em que o pássaro não se levanta, e a gente sabe por fim não vai se levantar nunca mais, o que cai dessa maneira não se levanta mais, entre uns e outros está o tempo em que se cresceu, e a morte passa a ser aquela que não tem nome.
Nilma Lacerda vive no Rio de Janeiro. É autora de, entre outros, Manual de Tapeçaria (1985), Sortes de Villamor (2010) e Estrela de Rabo E Mais Histórias (2021). Recebeu a distinção White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude, e os prêmios Jabuti e Rio de Literatura. O romance Iberê Camargo: Um Homem Valente foi publicado em novembro de 2022 pela editora Mínimo Múltiplo (RS), como primeiro volume da coleção Tipos Raros.
