De ‘MIL PLACEBOS’, por Matheus Borges

Trecho de Mil placebos,
publicação da Uboro Livros.

Minha mãe, ao perceber que eu a observava, virou-se para mim, tentando não manifestar o que sentia, mas eu era capaz de perceber. Estava assustada, comovida, surpresa. Ao mesmo tempo, desejava que eu me sentisse seguro, do mesmo jeito que almejava solidez em meio às recentes tempestades que acometiam nossa família. Ela pegou minha mão e me disse:

“Isso que você tem, isso que você está sentindo. Não tem nada de errado com isso. É algo difícil de lidar e talvez você até se sinta diferente dos outros. Diferente, sim. Mas não errado”.

Acenei positivamente com a cabeça, os olhos fitando a seta inerte do velocímetro. A descoberta de minha personalidade esquizoide, minha inclusão num grupo social, definido por critérios médicos, foi um dos raros momentos de epifania e autodescoberta que já vivenciei. A partir daí, artigos sobre o transtorno se tornaram parte de minha rotina, leituras canônicas para preencher a monotonia das horas. Imaginei querer compreender a ordem regente dos acontecimentos de minha vida e encontrar respostas para os meus problemas. Na verdade, eu buscava desvelar as motivações ocultas do meu comportamento. E ele se mostrara bem mais complexo do que eu era capaz de supor. Mesmo hoje, mesmo sabendo tudo o que sei a meu respeito, ainda sinto uma profunda desconfiança de mim mesmo. Então é preciso retornar a determinado artigo para me certificar de que sou capaz de entender o que faço e penso.

“O indivíduo esquizoide está desligado da realidade exterior a tal nível que ele ou ela sente que a mesma é perigosa. É uma resposta humana natural fugir de fontes de perigo e se voltar àquelas mais seguras. O esquizoide, portanto, está preocupado primeiramente em evitar o perigo e em garantir segurança”.

Meu pai, enquanto isso, procurava um novo emprego. Exausto, percorria inúmeros corredores apenas para constatar que já estava fora da faixa etária aceitável para contratação. Estávamos os dois um pior que o outro, forçados a aceitar eventos tão difíceis de engolir num período de tempo tão curto. A morte de alguém da mesma idade é algo extremamente confuso a um adolescente de dezessete anos. Pedir emprego a executivos vinte anos mais jovens é uma tarefa humilhante a um homem de cinquenta.

Minha lembrança do verão daquele ano é sobretudo química: um de nós tomava venlafaxina e o outro, citalopram. Éramos dois zumbis, sonolentos ou insones, sobretudo aéreos. O ambiente não era, portanto, o mais agradável. Mas, assim como a bibliotecária Mary Ann já havia feito em Jersey City, minha mãe também se esforçava para manter a normalidade de nossa vida doméstica. Lecionava três disciplinas na universidade e escrevia de vez em quando artigos curtos para revistas e jornais.

Esses artigos tratavam de política e atualidades, tudo sob um rigoroso ponto de vista acadêmico. Minha mãe era estudiosa da História e da Sociologia e tinha apreço especial por Thoreau, Roussaeu, bons e maus selvagens, indivíduos que se distanciaram do que entendemos por mundo civilizado e buscaram a verdade no isolamento. Seja para refutar a ideia de ordem social ou para reencontrar a essência dessa mesma ordem. Seja para desafiar a ordem atual através da desobediência civil ou impor sua própria ordem, através de um tipo autoritário de filosofia.

Naquele verão das desgraças, um artigo escrito por minha mãe provocou um pequeno tumulto. Era uma resenha comum, como tantas outras que costumava publicar em revistas e jornais. Veiculado num caderno de sábado, abordava um livro recém-lançado na França, chamado Le fardeau de la soumission. Seu autor, Augustin Bouchard, era um sociólogo idoso e provocador, algo marginalizado entre seus pares em função de sua personalidade. Nesse livro, Bouchard abordava a precariedade da vida imposta pelo capitalismo pós-industrial sob uma perspectiva sociobiológica. O protagonista dos nossos tempos, dizia ele, são os indivíduos que não encontram espaço na grande ordem do mundo financeirizado. Mais do que um sistema econômico, o capitalismo pós-industrial muitas vezes se comportaria como um tipo de seleção controlada e antinatural.

Sugeria o autor que a ocupação urbana em diferentes nichos levaria gradualmente à especiação da humanidade. Num espaço urbano, existem seres humanos que habitam apartamentos e seres humanos que habitam as ruas. Os dois seres, apesar de geneticamente idênticos, estão expostos a diferentes condições de habitat e acesso a recursos. Os homens dos apartamentos disputam comida e território com os homens dos apartamentos. Os homens das ruas disputam comida e território com homens das ruas e cachorros. Em teoria, os homens das ruas deveriam se adaptar, morfologicamente e em longo prazo, a esse novo nicho.

Não era uma resposta antinatural à evolução dos homens dos apartamentos, mas a continuidade natural da evolução humana, estagnada desde que os sapiens se assentaram em comunidades sedentárias e assim evitaram exposição a condições hostis de habitat. Primeiro, evitaram condições hostis e depois, passaram a controlá-las, decidindo quais sapiens poderiam ou não ser expostos à hostilidade dessa nova natureza artificial, criando novas hostilidades, tais como muros, grades e barreiras. Passaram a viver em segurança, mas deixaram de evoluir, relegando castas inferiores ao sofrimento e garantindo, em contrapartida, a essas camadas inferiores a continuidade do processo de adaptação.

Ainda que simplesmente apresentasse um resumo do pensamento de Bouchard, o texto de minha mãe foi recebido com surpresa por uma significativa parcela dos leitores do jornal. Enviaram e-mails à redação, acusando minha mãe de defender a eugenia e o darwinismo social. A enxurrada de críticas instigou os editores do caderno de sábado a diminuir a periodicidade de seus textos. Ao longo daquela semana, ela também recebeu diversas mensagens de leitores que elogiavam seu artigo, tendo sido convidada, inclusive, para ministrar uma palestra a um grupo que se reunia mensalmente para discutir noções de pureza racial.

Matheus Borges nasceu em Porto Alegre, 1992. É formado no curso de realização audiovisual da Unisinos e egresso da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil. Suas histórias já foram publicadas em revistas no Brasil e no exterior, bem como em coletâneas e antologias. No cinema, atuou como roteirista no longa A Colmeia. Atualmente, é mestrando no PPG Letras da UFRGS. Mil Placebos é seu primeiro romance. Nas redes sociais: @matheusmedeborg 

FICÇÃO

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