De ‘NADA QUE SE ASSEMELHE A QUALQUER ANIMAL VIVO’, por Gabriela Porto Alegre
De “Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo”,
lançamento de Gabriela Porto Alegre pela editora Urutau,
publicamos o poema “te dizer adeus é descer sem
freio uma serra em pleno temporal”
e o texto de orelha da poeta Juliana Blasina.
O que permanece na certeza
de que tudo convalesce?
Juliana Blasina
Em seu livro de estreia, Gabriela Porto Alegre nos diz que é preciso fazer com as palavras um pacto de sujidade. Regida por esse pacto, a poeta reorganiza órgãos e verbos, células e sujeitos, sílabas e organelas nas mais inusitadas composições até acessar as memórias escritas no avesso das carnes ou na escuridão dos ossários do passado — memórias herdadas das mães, das avós, das mulheres que as antecederam:
escutemos
a primeva sinfonia das vísceras
Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo nos mostra como sair do corpo para ocupar um corpo. Ainda que somando cortes e dando a eles um torniquete com o perfex, de modo que o fechar dos talhos acorde um novo sentir a léguas e léguas de distância do velho sentido. É na potência de versos lapidados para retomar o latifúndio arrendado do espaço-corpo que a poeta abraça a derrocada de estar viva, enquanto nos diz, entre sussurros e gritos, que:
o corpo
não pode ser meu
porque, como tudo, está à venda
A poesia de Gabriela Porto Alegre não chega para nos lembrar, para nos convencer, para nos conduzir: ela chega, ela existe, ocupada do propósito nada simples de existir e compreender seus fins. Em versos vigorosos, ela rompe com a necessidade de aprovação, com a sujeição, com a serventia — quando afirma que poucos gestos são tão importantes quanto venerar a inutilidade — e com outras tantas falácias que têm apequenado mulheres.
Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo ausculta sinais e segredos vitais da semente à carcaça. Algo que sentimos e quase, quase sabemos, mas que, sem a poesia para nos tirar do torpor e nos lançar entre o incêndio e o maremoto, permaneceria intacto em algum lugar em meio às entranhas do ser. Com unhas recém-lixadas, Gabriela descortina aquilo que sangra debaixo da pele.

te dizer adeus é descer sem freio
uma serra em pleno temporal
I
seus braços foram indo
decepando o céu da cidade
sua voz saiu do vácuo
amplificou o eco
transbordou bueiros
seu vocativo assumiu a forma de aftas
a visão de seus dedos
(folheando as divisórias
do arquivo de poemas que herdei
procurando aquele que fala do escafandrista cego
que se apaixonava pelo assobio
de um boto-cor-de-rosa
no Encontro das Águas)
ainda é uma lembrança esmigalhada
que dou aos pombos da sarjeta
o adeus, rota de colisão
é a sequência de curvas da serra Cunha Paraty
é o torrencial resvaladiço
é o pequeno pânico imposto pela paisagem divina
II
como será dizer adeus a um poema?
nunca mais saber dele
por quanto tempo é lícito que os cheiros impregnem a memória
sem que ela se torne um asilo?

Gabriela Porto Alegre Gabriela Porto Alegre é tradutora de literatura francófona, revisora, estudante, praticante de yoga, neta, filha, irmã, amiga e poeta. Atualmente licencianda em Letras na FURG, trabalha junto ao projeto “Troca de Livros”, pertencente ao programa “Socializando a leitura”, coordena o Diretório Acadêmico das Letras e é ativa em grupos de estudo sobre tradução. Publicou, pela editora Bestiário, a tradução “Veneza Salva – Poesia e dramaturgia em Simone Weil” em 2021 e “Mas meu vestido não ficou amassado”, de Corinne Hoex, com apoio do apoio internacional da instituição belga Passaporta. Compartilha textos e extratos de vida em seu Instagram @portoalegregabi. Acredita que a revolta é a arte da ruptura com o que nos destrói. Quer reconstrução, tradução e utilizar a literatura como mobilizadora de afetos e transformações.
