DE ‘UM NAVIO NA COXILHA’, DE LUÍS DILL

Reprodução do capítulo 1
de Um Navio na Coxilha,

mais recente romance de Luís Dill.

Meu pai morreu duas vezes. Primeiro no rio Amazonas, depois aqui, em Forquilha Seca. Por coincidência, suas mortes ocorreram no mesmo dia, um 24 de agosto. Em 1932, ele se finou a bordo do Jaguaribe; em 1954, quando desembarcou do navio.

Ele se chamava Edino Saraíba, tinha baixa estatura e dentes muito brancos. A testa larga desencorajava a impressão de possuir a cabeça esférica. Já as orelhas de abano reduziam o raivoso do seu olhar. Conforme mamãe, nas poucas horas em que estiveram casados, meu pai foi carinhoso e heroico. O retrato dele ficava pendurado na sala, dentro de moldura oval e dourada. E nem era retrato, era desenho. É que muitos anos depois de seu segundo falecimento, e sem nunca tê-lo esquecido ou casado de novo, minha mãe mandou um certo Custódio Ibaiguren, velho retratista instalado em Pelotas, desenhar meu pai a partir de suas palavras. Diz ela ter ficado igual ao seu amado e vertiginoso marido.

Saí com a pele canelada dos nortistas, as mesmas orelhas, mas meus dentes escureceram com o chimarrão e o palheiro. Também adquiri o peculiar gosto por peixe, iguaria pouco apreciada por estes campos.

Isso de morrer duas vezes vão achar que é causo ou doidice igual à do Girolamo Monteiro de Barros, o serventuário trancafiado como louco por 24 horas no hospital de Encruzilhada do Sul. Ao chegar com seu tordilho espumando de suor, na manhã do dia 24 de agosto de 1954, repetia sem parar a história de navio caído do céu, bem em cima de Forquilha Seca.

Mas se vou mesmo contar, começo com o Tinhoso. Sim, porque o galo de rinha do seu Algemiro Bueso, um campeão para além das fronteiras, foi o primeiro a dar o alarme naquele dia espantoso. O bicho se manifestou com o primeiro ameaço da manhã. O canto longo e agônico quebrou o sono leve do velho. É o graxaim manco arrodiando meu galinheiro. Em seguida, foi a vez da cachorrada. Latiam e uivavam. Então seu Algemiro avaliou que poderiam ser ladrões. Até gostou. Era homem de peleias, combatera em 23 e 30. Afastou as cobertas, enfiou as alpargatas e o pala. Apanhou o Smith & Wesson 38 e destravou a porta da casa. Viu a cerração iluminada e estranhou. Era cedo, difícil as primeiras luzes do dia estarem ali. Automóvel? Lampião de abigeatários? O frio de agosto acertou-lhe o rosto amassado e a barba nazarena. Quero-queros iniciaram berreiro, acompanhados pelos mugidos roufenhos das vacas no curral. Em seguida, ouviu o relincho dolorido de Canhoto, seu rosilho. O pátio do ranchinho se transformara em verdadeira ópera animalesca.

Aí o clarão de fogo incendiou o nevoeiro. Pintou de amarelo e vermelho os tufos e gomos orgânicos do tecido líquido a mastigar a alvorada. Isso não é auto nem lampião, ele decidiu. A luz desceu enviesada para os lados da cidade. Em seguida, veio estrondo de meter medo e tremer vidros e penicos.

— A la pucha! — ele disse e abaixou a arma.

Entrou, botou o lenço branco — pois nunca saía sem ele —, o resto da indumentária, calçou as botas e foi ao celeiro encilhar o Canhoto. Era improvável seu Algemiro se assustar. Desdenhava até das coisas do outro mundo. Ademais era homem curioso. Não ficaria sem saber do que se tratava. Algum tipo de desastre, presumiu. Capeta, o cusco branco e preto, o acompanhou, nunca desgrudava do dono. Ralhou com o resto da cachorrada, que vigiassem a propriedade.

Guiou-se pelo fulgor. Passado o eco da troada, o brilho cedia. O braseiro do seu interior faiscava agora em modulações espaçadas. Mesmo assim, era nítido o ponto das emissões.

O rosilho trancava passo, como se desconhecesse o caminho até a cidade.

— Anda, imundície!

Homem e animal soltavam bufos pelas narinas. O frio era de empedrar água de poço. Nem bem dez minutos, e subiu o cheiro de capim pisado e terra recém-arada. Trator incendiado? Devia ser auto. Mas de fazer chama até o céu? Trem poderia ser. Maior, mais vigoroso. Mas por ali os trilhos não passavam. Aeroplano, quem sabe?

Canhoto estacou de vez na entrada da coxilha. Moveu a cabeça de lado a lado com relinchos de susto. Seu Algemiro o repreendeu. Enfiou a mão por baixo do poncho e firmou bem o revólver. O cavalo cavoucou a terra. Capeta parou, farejou o desconhecido, a cabeça se movendo em meio círculo.

O velho desmontou, forçou a vista. Poucos metros adiante viu um escuro sem forma. Mas sólido, dava para intuir. Estufou o peito e mostrou a arma. Que venha! Que venha!

Deu novos passos. Viu como as cintilações se concentravam agora no alto do bloco de cerração. Isso lhe deu a certeza de estar diante de uma estrutura. Havia também nova fragrância a se filtrar pela cabelama de suas narinas. Seu Algemiro precisaria de breve momento até decifrá-la.

E nada de a manhã entrar. O velho subiu o resto da coxilha com passo estugado, já impaciente, as botas com pouca tração sobre a grama congelada. Capeta, ao lado, dava fé de tudo. Aí algo adiante se moveu com rumor áspero e ele passou fogo.

O tiro quase não fez barulho. Espanou a frente dos olhos a fim de desfazer as fumaradas e viu o grupo de jacundás a acenar seu inútil pedido de socorro com caudas e cabeças, enquanto a piraíba de bons dois metros e cento e quarenta quilos se debatia baleada no canto da boca, perto dos barbilhões. Só então ele compreendeu o aroma: água doce.

Nem teve tempo de elaborar questionamentos. A brisa dissolveu um tanto da névoa, e seu Algemiro viu com a nitidez dos justos o casco escuro do navio pousado sobre os maricás. Chegou a erguer o revólver, mas não fez fogo. Seu pensamento colapsou diante do espetáculo.

Luís Dill nasceu em Porto Alegre em 1965. É formado em Jornalismo pela PUC/RS e tem Pós-graduação lato sensu em Literatura Brasileira. Entre suas premiações estão o Açorianos de Literatura e o Biblioteca Nacional. Alguns de seus títulos já foram adquiridos por governos municipais, estaduais e federal. Vários receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e fazem parte de seu acervo básico. Em sua atividade de escritor, participa de feiras do livro e de variados tipos de encontros com leitores em escolas e universidades.

FICÇÃO

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: