GIL, por Lúcia Nogueira Leiria

Não me acho uma pessoa curiosa, daquelas que se envolvem com qualquer fato que não lhes diga respeito, sou muito autocentrado, mas, outro dia, saí para passear com o cachorro e vi no chão, perto de uma lixeira de rua, um envelope subscritado que parecia ter algo dentro. Fiquei intrigado, mas disse para mim mesmo, bobagem, hoje em dia ninguém mais escreve cartas. Caminhamos dois ou três passos, e não me contive. Voltei, juntei o envelope. Sim, havia uma carta dentro, escrita com uma fina letra. Comecei a ler e não consegui desgrudar os olhos dela. Se quisesse, poderia contar o que li, mas prefiro reescrever para que não se perca nenhuma vírgula.

Facundo,

A vida é curiosa, nos aproximou por meios virtuais, depois nos colocou frente a frente em Buenos Aires, e agora me vejo diante desta carta. Escrevo em português, à mão, com letra de caligrafia, para acompanhar o traçado do meu coração. Nosso encontro foi meio esquisito, eu diria, com hora marcada para começar e terminar. Iniciou dentro de um carro mal estacionado na movimentada esquina da avenida Libertador com a rua Libertad e continuou num bar a alguns metros dali, onde conversamos, rimos, tomamos um café, trocamos olhares ternos e nos beijamos. Estávamos gostando daquilo, mas não podíamos nos demorar, tinhas o futebol, que levavas muito a sério, e eu, a viagem de volta, marcada para aquela noite, mas te convidei para me visitar em Porto Alegre. Tu gostaste da ideia, pelo menos foi o que me pareceu. Quando cheguei, reforcei o convite. Confirmaste que virias, continuamos conversando e nos divertíamos imaginando como seriam nossos dias juntos, sem a pressa do primeiro encontro.

Eu esperava. Estava ansiosa e nem sabia muito bem que rumo tomar. Achei que meu corpo, seria um bom começo. Queria meus músculos definidos, comecei a nadar todos os dias, feito louca. Quando me jogava na piscina, deslizava, me deixando ser massageada e erotizada pela água. Fiz peeling com mel e óleo de amêndoas, para tuas mãos correrem pelos meus contornos, tendo em meus mamilos o único obstáculo. Depois de nadar, tomava sol por uma hora ou mais. Quando tirasse a roupa, sonhava em ver refletido no teu olhar o tom do meu bronzeado. Abri um vidro de perfume, guardado há tempo para uma ocasião especial, e tratei de usá-lo para minha pele absorver a fragrância e, quando quente, exalar notas de patchouli e ylang ylang, te deixando inebriado. Comprei vinho branco, torrontés – não tinha certeza se te agradaria, mas arrisquei, argentinos gostam dessa uva. É refrescante, bom para aplacar o calor entre um beijo e outro.

Arrumei a casa e, em cada peça onde entrava, me via envolta em teus braços longilíneos e assertivos. Ansiava por me colar inteira no teu corpo. Sentia teu calor, teu cheiro, e tinha uma vontade enorme de circundar teus quadris com minhas coxas. Bom goleiro, como me disseste que és, tinha certeza de que saberias onde e como me agarrar, me oferecendo uma boa cavalgada. Depois disso, nem preciso descrever a intensidade dos meus orgasmos quando, antes de dormir, tu invadias meus pensamentos.

Há tempos não me sentia tão fêmea. Eu estava radiante, linda, esperando por ti. Mas não vieste. Sequer respondeste à última mensagem, quando perguntei sobre o horário do voo. Seria tão fácil dizeres “não vou mais”. Poderias ter mentido também, qualquer coisa, mãe levou um tombo, filho fugiu de casa, se não quisesses dizer a verdade. Uma amiga, tentando me consolar, disse que podes ter te assustado com um jeito autêntico demais que tenho. Não acredito nisso. As mulheres não são tão assombrosas assim. Mas, se foi medo mesmo, lamento. Vagina dentada é lenda, sabias? Não sairias diminuído de dentro de mim. Eu só desejava um homem por uns dias, e tu tinhas sido o escolhido.

Teresa

Cheguei em casa, soltei o cachorro, pendurei a corda na área de serviço. Eu tinha a carta no bolso e algo em mente. Fantasiei que o destinatário pudesse ser eu, que ela me conhecia, que já havia me visto pelo bairro, que era um truque para chamar minha atenção e que, não tardaria, se aproximaria de mim. Aproveitei que estava só, tirei a roupa, me olhei no espelho. Por um instante, cheguei a ver refletido o vigor do jovem atraente que fui, mas as glórias do passado logo se dissiparam. Não, não era para mim aquela carta. Meus braços não tinham nada de longilíneos. E meus quadris, judiados pelo tempo, não tinham mais a força para uma montaria. Não tenho ideia de quem seja a mulher que escreveu essa carta, só sei que atiçou meus sentidos, há algum tempo adormecidos. Mas e esse sujeito? Para mim, não passa de um gil. Gil de gilipollas.

Lúcia Nogueira Leiria nasceu em São Francisco de Assis, RS. É graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi professora na graduação e na pós-graduação em instituições da rede privada de Porto Alegre. Ministrou Português e Cultura e Literatura Brasileiras na Universidade Ëtvös Loránd, em Budapeste. Atualmente é professora de Linguística no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande.

FICÇÃO

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