IDA AO BANCO, por Graziela Jacques Prestes

Era um início de tarde quente e abafada. Tínhamos acabado de almoçar e eu estava me preparando para sentar no sofá e assistir ao telejornal, como costumava fazer desde os tempos em que vivia com meus pais. Era a hora do cafezinho, de descansar um pouquinho antes do próximo turno. A conversa era frouxa, amenidades, apesar das notícias diárias sobre violência, corrupção e inflação.

Olhei para Henri e não disse nada. “Vamos ao banco?!”, repetiu. Ergui os olhos. Ele, irredutível. Não suspirei, isso o irritaria ainda mais. Ele era furioso com as palavras, cortavam mesmo como o fio afiado de uma navalha. E já tinha almoçado, deveria estar mais calmo. Henri com fome era intratável. Queria o dinheiro que havia me emprestado. Não era muito, mas queria agora, neste momento, já.

Respirei fundo internamente, sem que ele percebesse minha recomposição. Qualquer gesto seria lido como uma provocação e, então, novas flechas incendiárias viriam. Nessas horas, pensava em tudo o que eu trabalhava e pagava. Nunca era suficiente. Nunca eu era o suficiente. Roupas, móveis, plano de saúde, escola, empregada, os gastos diários com lanches e saídas pareciam nada. Não havia o nosso, havia o teu e o meu. Conta conjunta nem pensar, poupanças separadas. Mas eu não reclamava, tinha meu trabalho, pagava as minhas contas e as de nossa filha, tudo relacionado a ela. Estava fazendo a minha parte, nada menos que a minha obrigação.

“Vamos?!”, gritou novamente. Queria ter o poder de simplesmente silenciá-lo, de demovê-lo daqueles ataques de fúria desconcertantes. Quanta vergonha já havia passado na frente de familiares e amigos. Alguns não aguentaram e se afastaram. Entendo-os e tenho saudades. Não pense que não tentei saltar deste barco de águas tempestuosas. Tentei algumas consideráveis e marcadas vezes, mas, quando sou eu a enfurecer, ele se acalma. Então caio na rede novamente. A verdade é que vivemos muitos momentos felizes, divertidos, boêmios. Conversávamos a não valer mais. Sonhávamos e crescíamos. Era bom. Foi bom.

“Levanta!”, esbravejou chegando bem perto de mim. Pela janela, entravam aqueles raios solares ultravioletas, o sol de verão a pino. “Nove por seis”, disse certa vez minha médica. “Vou medir de novo”. A verdade é que quem tem pressão baixa se sente doente nas altas temperaturas. Água, chapéu, protetor solar. E ainda tem os cânceres da família. Dei mais um suspiro para dentro. Não vai ter jeito, vou ter de ceder.

Nem os mendigos e seus cachorros estavam estirados pelas calçadas. As sombras das árvores não diminuíam o calor que emanava do basalto e do asfalto. Era meio-dia e meia, uma hora. “Não geme que dói menos” era uma das máximas de Henri. Tentei enxergar o colorido dos ipês roxos e amarelos, o perfume do jasmim-manga, mas não era possível. Havia só o íngreme aclive até a avenida onde se localizava o banco. Vamos lá, Sísifo.

Apertei os olhos atingidos pela forte luminosidade. “Qual a pressa em eu te devolver o dinheiro? Daqui a pouco, temos uma compra, então eu faço!”, dizia-me mentalmente. Sei lá qual era o emaranhado de ideias neuróticas e persecutórias. Sei que eu já tinha sido julgada e condenada. “Só pode odiar as mulheres”, eu continuava em profusão. “Não vai amar nunca alguém como amou a mãe”, eu acrescentava. E minha fisionomia se encerrava gradativamente. Quando chegamos ao banco, eu estava, enfim, furiosa.

Cliente antiga, todos me conheciam: a atendente “Posso ajudar?”, as caixas, o gerente de conta e os dois guardas que ficavam atrás da divisória de vidro. Era o meu banco, as minhas cartas na mesa, o meu poder de controlar a vida, de ter a minha liberdade.

Entramos na antessala dos caixas eletrônicos, Henri colado em mim, eu, contrariada, esbravejando em silêncio. Fui até o balcão, não me lembro se para pegar um envelope ou uma caneta, e, de repente, senti uma presença bem na minha frente, do outro lado do vidro. Era um dos guardas, que me olhou fixamente. Baixei os olhos e vi que ele estava com uma das mãos em cima da arma do cinturão. Olhei-o de volta e me assustei. Seu colega estava logo atrás, também atento a nós. Ambos fizeram um discreto movimento com a cabeça, como que perguntando se tudo estava bem. Por um átimo de segundo, pensei em menear de volta feito um não.

Graziela Jacques Prestes é formada em Letras pela UFRGS (1996) e mestre em Linguística Aplicada pela PUC/RS (2003). Lecionou em Instituições de Ensino Superior de 2003 a 2016. Atualmente trabalha com Ensino Fundamental e Médio e mantém a página https://www.facebook.com/aulasdeportuguescomgrazi/

FICÇÃO

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