INVISÍVEL, por Danilo Giroldo

O conto integra o livro Contos de morte,
de Danilo Giroldo. Publicação de 2022 da editora Patuá.

Ouço o despertador do celular muito ao longe e lentamente vou retomando a consciência. Essa é uma daquelas manhãs que acordo sem saber ao certo onde estou, como fui dormir e o que eu tenho na agenda. O quarto ainda está escuro, bato a mão na tela e o alarme para de soar enquanto escuto o telefone cair atrás da mesa de cabeceira. O mau humor já me ataca, viro para o lado e me aconchego no edredom lembrando que hoje é terça-feira, me afundei na vodca ontem à noite, não estou no plantão presencial, mas tenho 30 minutos para levantar e logar o computador para bater meu ponto. Maldito celular que foi cair. Às vezes me impressiono com o vício neste aparelho. Jamais o ser humano foi tão dependente de alguma coisa, todo mundo acorda e a primeira coisa que faz é olhar a tela brilhante, checar as notificações, ver quem foi o infeliz que mandou mensagem de madrugada, os e-mails que chegaram antes do raiar do dia ou alguma notícia que ajude a diminuir o tédio que é viver neste tempo em que parecemos estar presos e imobilizados. Me estico todo e alcanço o celular no chão, mas quando a luz do visor acende, o terror toma conta do meu corpo e eu o atiro longe de novo. Só posso estar dormindo ainda e sonhando.

Acendo a luz e sinto um choque percorrer o meu corpo inteiro, não consigo controlar e grito a uma altura que não sei dimensionar. Devo ter acordado o prédio inteiro, mas isso não é nem de longe algo que me preocupe nesse momento. As lágrimas e os soluços brotam e começo a chorar de pavor e desespero, a confusão mental toma conta de mim e custo a acreditar que seja verdade o que estou vendo. Minha mão direita sumiu, desapareceu, está completamente invisível. A esquerda está ali, intacta, perfeita, mas não consigo enxergar a mão direita. Só vejo até o punho e depois nada mais. O mais estranho é que consigo tocá-la com a mão esquerda, o tato está intacto. Corro para o banheiro e a coloco embaixo da água e consigo lavá-la normalmente. É como se ela estivesse lá perfeitamente, mas eu não a vejo. Ficou invisível.

Olho para o relógio e vejo que já estou dez minutos atrasado. Corro para ligar o computador e logar no sistema. Já vão descontar meu salário. Quase sempre faço isso. Acordo, faço o login e depois vou fazer meu café. Como é ridículo esse método de controle. Colocam você em home office, mas lhe tratam como se estivesse de plantão e tivesse que bater o cartão presencialmente. Normalmente eu faço isso por preguiça ou revolta mesmo, e não por uma situação apavorante e descabida como essa. Minha mão ficou invisível, o que vou fazer agora? Não pode ser problema de visão, não estou ficando cego porque enxergo tudo na minha volta. Só não vejo a minha mão, embora ela funcione perfeitamente. Também não é um sonho, porque todas as minhas tarefas do dia estão ali na tela, e as concluídas de ontem também. E hoje tem trabalho para umas 15 horas no mínimo. Cara, isso é loucura, mas sigo adiante porque não posso mais ter desconto no salário.

Passo o dia programando com a cabeça nas nuvens. Não achei nada parecido pesquisando na internet. Se isso já aconteceu com alguém, não foi divulgado. Podem ter abafado o caso, ou transformaram a pessoa em cobaia. Decido tomar um café rápido no meio da manhã, quando noto que já não vejo mais metade do meu antebraço, além da mão. Será que vou a um médico? O que vão pensar de mim? Não é possível, vão me internar, querer fazer testes, exames, vão me socar em algum canto para não gerar pânico na população. Será que é alguma nova epidemia? Algum tipo de vírus novo? Aí mesmo que vão me matar. O que eu vou fazer? Os alarmes de baixa produtividade continuam a soar, preciso voltar ao trabalho, mas que jeito vou me concentrar? O dia se vai e não faço nem metade do que precisava, mais desconto no salário. Se eu não arrumar alguma grana extra, esse mês vou ter que atrasar o aluguel. Vou tomar banho e o meu braço direito inteiro desapareceu. Enquanto eu estou trabalhando em casa dá pra levar, mas o que vou fazer amanhã que é meu turno no plantão presencial. Doze horas no departamento, como vou fazer pra ninguém reparar? Vou dormir com a cabeça explodindo, inconformado e rezando para ter sido um sonho, uma viagem, alucinação, sei lá. Agora mesmo que não arrumo namorada. Vou me isolar cada vez mais, minha vida está acabada, ou o que restou dela, que já é quase nada. Na verdade, se isso persistir, aniquila a minha chance de sair desse inferno que com esforço chamo de vida. Coloco o celular pra despertar com esperança de acordar amanhã vendo o meu braço novamente.

Desperto num sobressalto e, quando o seguro pra desligar o alarme, já percebo que a minha mão direita continua invisível, mas a esquerda está lá. Acendo a luz e nada do meu braço. Parece que não avançou, mas quando tento me levantar, já não vejo mais meu pé direito. Começou a atacar as extremidades dos membros inferiores, continua avançando, o que vou fazer? Salto rápido da cama e procuro blusas de mangas compridas, luvas, botas, sorte que não está tão quente. Mas o departamento é abafado, vão estranhar as minhas roupas, não sei se consigo trabalhar naquele buraco usando luvas. E a biometria para acessar o prédio, será que vai funcionar? Engulo meu café e me boto na rua atrás do ônibus que me leva para o trabalho. Aparentemente ninguém está notando nada, será que alguém nota alguma coisa em alguém algum dia? Eu poderia estar de sunga no ônibus que ninguém ia ver que meu braço e pé estão invisíveis. Se for uma doença nova, devo estar infectando um monte de gente neste momento. Desço nervoso no ponto em frente ao departamento e corro para a porta suando e tremendo de medo que a biometria não funcione. Não vai funcionar, é uma droga de um sensor de luz. Como vai funcionar se a luz passa pelo meu braço inteiro sem resistência. Decido nem tentar e fico na porta até chegar algum colega para que eu entre junto.

Os dias de plantão normalmente passam muito devagar, mas hoje está especialmente lento. O call-center a mil, eu tentando resolver problemas nos sistemas de todo mundo e com a cabeça na minha própria questão insolúvel. Será que já tomou toda a minha perna? Se tomar o meu corpo inteiro, como vou fazer com o meu rosto? Passo o dia inteiro no departamento e ninguém fala comigo. Como um sanduíche na própria estação de trabalho, emendo a hora de almoço e nada, absolutamente nada acontece. Vejo alguns grupinhos a distância olhando para mim com a mesma cara de desprezo de todos os dias. Devem estar me achando só um pouco mais estranho que normalmente, imaginando o que essa figura patética deu para usar luvas nesse buraco abafado. Volto para casa sem pronunciar uma única palavra no trabalho que não tenha sido atendendo no call-center. Mesmo trajeto, ônibus entupido, nenhum comentário, nenhuma observação. Chego em casa, corro para o banho e a minha percepção se confirma. Toda a minha perna direita tornou-se invisível.
Vodca pura com gelo é o que me resta. Entre uma dose e outra há o choro, os soluços, a certeza de que não há futuro possível, talvez eu devesse terminar com tudo antes que essa loucura acabe comigo. O que vou fazer quando ficar inteiro invisível?

Acordo de madrugada no sofá em meio ao vômito e com a cabeça explodindo. Tomo outro banho e vejo que a progressão parece mais rápida, já não tenho o braço esquerdo inteiro visível e metade da perna esquerda. Será que o álcool acelera o processo? Essa vodca horrível deve estar acabando comigo. Será que tem alguma impureza ou contaminação nessa droga? Mas que substância poderia causar invisibilidade? Com certeza alguém já teria descoberto isso. Não existe explicação racional para o que está acontecendo comigo. Me jogo na cama com imensas tonturas, o estômago embrulhado e com o choro que me acompanha desde que este inferno iniciou. Levanto-me novamente de sobressalto com o despertador. Acordar, logar no sistema e fazer café. Rotina escrota dos dias de home office. Turnos de doze horas em casa por dois dias contra doze horas presenciais, folga só aos domingos. Tenho hoje e amanhã para resolver isso. O trabalho acumulando dia após dia. Neste ritmo não vou cumprir nem metade das metas mensais, o que vai significar menos da metade do meu salário se contabilizarem todos os atrasos. Não vou ter dinheiro para pagar o aluguel. Já não vejo braços e pernas e a invisibilidade avança barriga acima. Neste ritmo, amanhã estarei totalmente invisível. Talvez eu devesse procurar um médico, mas qual? Pronto socorro?

Recebo uma mensagem do coordenador dizendo que três dos cinco sistemas da minha responsabilidade estão com erros críticos e travados. O diretor já cobrou e preciso resolver o mais rápido possível. Como vou me concentrar nisso? Nem tomo o café e já começo a trabalhar, tudo é urgente para os outros e eu? Serei urgente para mim mesmo? Era bem mais simples do que eu pensava, trinta minutos e tudo funcionando de novo. Levanto a camisa e não vejo nada abaixo do umbigo. Mais alertas de baixa produtividade, itens de desenvolvimento com atraso de mais de uma semana. Espero conseguir receber algum dinheiro no fim do mês. São idiotas os que pensaram naquela reforma pensando em produtividade. A combinação de salário baixo e pressão crescente atrai apenas quem não tem outra opção na vida, como eu. Serviço cada vez pior para o usuário, trabalhadores cada vez mais doentes e improdutivos e pior, agora tornando-se invisíveis. Será que tenho colegas passando por isso também? O dia acaba e, de novo, não supero nem metade das metas diárias. As mensais não chegarão a trinta por cento, nunca rendi tão pouco. Sempre deixei para virar noites no fim do mês e correr atrás do prejuízo, mas como vou fazer isso ficando invisível? Esse mês vou mesmo atrasar o aluguel. Sento no sofá com a garrafa de vodca e fico olhando para o teto esperando ele começar a girar. Não há chance, não há perspectiva, vou continuar desaparecendo e não sei o que fazer.

Como esperado, pela manhã não tenho mais nenhuma parte do corpo visível, embora todas estejam funcionando normalmente. As roupas ficam preenchidas pelo nada, embora isso não seja tão diferente de antes deste inferno começar. Meus óculos suspensos no nada. Uma das dúvidas que eu tinha, ao menos, foi sanada. Mesmo meus olhos ficando invisíveis, eu continuo enxergando normalmente. Assim como continuo ouvindo e sentindo os odores horríveis do meu apartamento. Eu deduzia que seria assim, afinal meus membros desapareciam e eu continuava com o tato intacto. Como vou para o trabalho amanhã? Por mais que cubra o corpo e cabeça, as pessoas vão notar que meu rosto está invisível. O pânico de sair de casa me atormenta o dia todo. Mais um dia largamente improdutivo. Já nem faço mais as contas do tamanho do desconto no meu salário, só consigo pensar em como vai ser sair e trabalhar estando completamente invisível. Passo a noite quase toda em claro e durmo só muito tarde. Acordo assustado, acendo a luz e sinto um breve alívio, pois como já estou inteiro invisível, a progressão do problema parece ter cessado. Visto roupas pesadas, um chapéu velho e óculos. Botas, luvas, calças e blusas compridas. Exceto pelo meu rosto e os óculos suspensos, pareço uma pessoa normal.

Saio do prédio, cumprimento o porteiro, aguardo no ponto e nada. Ninguém notou. Nenhuma surpresa. Se passar pelo trajeto do ônibus, creio que chego em segurança no trabalho. Se alguém notar lá, talvez me ajude a resolver o problema, não tenho mais como esconder. O meu ônibus chega, aceno, subo, passo o cartão, fico em pé no corredor e nada, absolutamente nada. Acho que ninguém mais olha no rosto de ninguém. Todos concentrados em seus celulares ou olhando para o horizonte com seus fones de ouvido. Aciono o botão quando chega a minha parada. Desço e nada aconteceu. Agora aquela rotina de esperar algum colega abrir a porta com a sua biometria para que eu possa entrar. Vejo o Jonas ao longe se aproximando apressado, encosto na porta, disfarço, cumprimento, um rápido gesto afirmativo com a cabeça e entramos juntos. Cumprimento mais algumas pessoas e ninguém nota nada. Começo a ficar desconfortável com isso. Ninguém nunca teria olhado para o meu rosto? Será que sabem que eu existo? Passo o dia novamente na minha estação de trabalho, saio após o fim do expediente com o prédio já vazio. Tão vazios como foram os comentários que ouvi durante o dia. Piadas, reclamações, futebol, ninguém percebeu que estou invisível. Isso é muito frustrante. Eu imaginava que era um nada mesmo, mas é muito ruim sumir diante de todos e ninguém perceber.

Volto de ônibus, compro mais duas garrafas de vodca no mercadinho da esquina, entro em casa e não sei no que acredito menos, se no fato de ter me tornado invisível sem qualquer explicação racional ou ninguém ter notado a minha invisibilidade em um dia inteiro na rua e no trabalho. A primeira garrafa não dura nem trinta minutos e eu ainda não acredito. Começo a segunda junto com o choro mais dolorido que já chorei. Nunca me senti tão sozinho em toda a minha vida, desapareci de mim mesmo, ninguém percebeu e continuo sem saber o que fazer. Apago antes da metade da segunda garrafa. Acordo mijado e vomitado, minha bexiga e meu estômago continuam funcionando, apesar de invisíveis. Tento levantar do sofá e caio de cara no chão. Meu braço direito não está apenas invisível, ele agora sumiu completamente.

O terror toma conta de mim novamente. Tento me levantar e não tenho mais a perna direita também. Me arrasto até o banheiro. Ligo o chuveiro, tomo um banho tomado de pânico. São quatro da manhã e a evolução parece ainda mais rápida. Não vou conseguir logar, vou perder um dia inteiro de trabalho. Preciso ir a um hospital e conseguir um atestado, senão pode dar justa causa. Maldita reforma. Saio do box e não consigo mais pegar a toalha. Meu braço esquerdo desapareceu. Seguro a toalha com a boca e vou me arrastando até a cama. Rolo no lençol para tentar me enxugar, mas a minha perna esquerda agora também não existe mais. Estou sumindo. Tento me lembrar onde está meu celular. Preciso chamar uma ambulância, mas tento tocar o meu peito com o queixo e não sinto mais nada. Sou apenas uma cabeça invisível. Será que já fui algo além disso? Minha voz não sai mais da boca, não consigo gritar. Sinto minhas pálpebras fecharem com a sensação de um sono profundo. Eu não posso dormir.

Danilo Giroldo, 48 anos, é paulista e vive na cidade do Rio Grande, extremo sul do Rio Grande do Sul. É professor da Universidade Federal do Rio Grande – FURG e publicou os livros de poesia “Vala” e “O canteiro das flores de metal e o jardim de areia” em 2019 e 2020, além do projeto coletivo “De labirintos e espirais: sete poetas de Rio Grande” em 2021 e “Contos de Morte” em 2023, todos pela Editora Patuá.

FICÇÃO

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