O PESADELO, por Salvador Baladan
Era noite, tarde, deitei, fui dormir, quando estava quase pegando no sono meu filho bateu na minha porta
– Deixa dormir com você essa noite – pediu – estou assustado, tá ventando muito na rua – afirmou.
– Tá bom, vem cá então – respondi
Ele subiu na cama, me deu um beijo, agradeceu. Abracei-o, dei um beijo na testa, estiquei o cobertor e dormi. Sonhei, tive um sonho muito esquisito, se eu não o visse desde o ângulo do humor, diria que foi um pesadelo. Estava eu fazendo um churrasco, a família reunida, – a carne está pronta – eu disse – querem que sirva? – perguntei. Responderam aquelas diversas figuras cambiantes, confusas que no sonho, de repente são pai, mas logo amigo e depois irmão, por vezes vizinhos, todos misturados, metamorfoseados sendo nenhum e alguns ao mesmo tempo, responderam que sim. Em seguida eu quis saber – querem carne de vaca ou de gente? O pessoal respondeu que queria carne de gente, eu, com muita naturalidade respondi – tá certo então, não tem problema e peguei uma faca enorme, por não dizer facão e dei um corte no meu braço, arranquei todinho, cortei o osso de um só golpe firme com aquela… arma branca? O meu toco de braço sangrava abundantemente e senti uma dor intensa, mas não dei importância. Coloquei o braço na brasa e falei – uns minutinhos após – já está saindo. No que terminei de dizer isso senti outra vez uma dor muito forte e pensei que tinha feito um absurdo, ia perder meu braço, mas um velho tio que estava ali por perto me tirou a tristeza dizendo que não ficasse preocupado, pois havia um medicamento para fazer crescer osso, que se eu tomasse meu braço cresceria e acrescentou – claro, pode ser que não seja muito forte, vai ficar meio molinho, mas perder você não vai perder não. Fiquei tranquilo, mas pensei comigo mesmo, esse outro não vou arrancar, vou filetar, e comecei com a faca a tirar tirinhas de carne do braço que tinha me sobrado. Como? Pois não sei, os sonhos são meios estranhos, mesmo sem ter o braço que tinha arrancado, tirei os filetes do outro com o vazio do braço ausente.
Coisa doida esses sonhos perturbadores, me acordei no meio da madrugada, com as batidas do meu coração, frenético, assustado pela chacina que eu tinha cometido em mim. Mas, no meio dessa perturbação, percebi que estava intacto, completo, sem nada faltando, saudável e todo suado. Olhei em volta, abracei meu filho e fiquei quieto tentando me deixar pegar pelo sono novamente. Coisa que não foi possível, pois escutei um ruído sigiloso dentro de casa, – que é isso? pensei. Fiquei com medo, pensei em me levantar e ir ver o que era, mas pra sair tinha que pegar o revólver, não podia eu sair assim, de mãos abanando, está muito perigoso, hoje em dia, estão assaltando todo mundo a todo instante. De repente senti um clarão, olhei. Percebi que tinham ascendido a luz do corredor, fiquei petrificado. – Puta merda – pensei – são assaltantes. Naquela hora já não dava pra pegar o revólver, qualquer mínimo movimento eles iriam perceber. De repente senti um barulho, alguma coisa se esbarrou no chão, não tive mais dúvida de que havia gente estranha na minha casa. Não me mexi, meu filho acordou com o barulho. Eu o apertei contra mim e lhe tapei a boca com a minha mão e o abracei com o outro braço – São ladrões, vamos fingir que estamos dormindo, fica quieto, não se mexe. Ele confuso (percebi pela fresta de luz que vinha por debaixo da porta seus olhos arregalados) apenas assentiu com a cabeça.
No que acabei de dizer isso entraram no quarto, com uma lanterna. Não ascenderam a luz, revisaram tudo, pegaram muitas coisas, entre elas, o revólver que estava na mesinha de luz, ao lado da cama, eram dois. Colocaram a luz no meu rosto por duas vezes. Depois saíram do quarto, foram no quarto do Bruno, revistaram tudo, foram na sala, reviraram a casa toda, fiquei com medo. Pensei que iam nos apagar. O tempo conspirou contra mim, estancou-se. Nem me mexi, fiquei sempre fingindo dormir, na mesma posição, o Bruno também, mas de vez em quando o coitadinho suspirava quase que soluçava de medo, de terror, de suspense, eu escutava seu coração bater muito forte, o meu também palpitava acelerado. Suas lágrimas, como violadoras da serenidade pretendida, começaram, muito constrangedoramente, a penetrar pelo seu rosto, mas ele sabia que devia se conter e foi o que fez. Eu de vez em quando abria muito timidamente os olhos, uma abertura mínima, que desse só para vislumbrar a distancia dos ladrões. Não acredito em deus, mais rezei, rezei para que não achassem o cofre, se o achavam, na certa me acordariam para que eu o abrisse com a senha. Rezei, mas, as ironias da vida! Penso que por não acreditar em deus foi que eles acharam o cofre. Fiquei com terror no peito. Minha realidade psíquica começou a me envolver, a me trair, imaginei coisas inimagináveis, o terror assomava por todos os cantos da minha mente, tudo ganhava grandes dimensões, tudo era absoluto frente à fragilidade que eu representava para aqueles dois caras desconhecidos, armados. Pensei que no fim meu sonho não tinha sido tão trágico. Me perguntei se eu não estaria sonhando; rezei para estar sonhando mas eu sabia que não era um sonho. – Puta merda – pensei. Vão vir me acordar, de fato veio um deles, remexeu tudo mais uma vez, achou algumas coisas a mais. Quando foi sair do quarto baixou as calças e com uma velocidade imensa e um prazer absurdo despejou suas fezes, o odor convulsivamente se apropriou do ambiente, senti náuseas.
Saiu, foi até o escritório ao encontro do outro, lá falaram umas coisas que, com tanto terror, não decifrei. Entre eles cruzaram palavras por alguns minutos que para mim resultou um tempo interminável e torturador; em seguida um tiro ressoou sobre o estado de estupefação que eu e meu filho sentíamos. A casa de repente ganhou um significado sombrio, aquele cheiro à merda, aquela gente estranha, aquele tiro, tudo foi tecendo um cenário angustioso, minha respiração começou, involuntariamente, a ficar descompassada, um suor frio corria por minha espinha dorsal, minhas mãos também estavam suadas de uma agua salgada que o meu corpo se recusava a acolher. Com o som do tiro pude adivinhar que tinham aberto o cofre, pois aquelas vozes que eu não compreendia com nitidez, ecoaram uma espécie de celebração e logo falaram sobre a grande questão – o que fariam com a gente? Trocaram algumas frases que o meu nervosismo não me deixou entender, mas captei que um deles, no fim da conversa, disse – dá na mesma.
Voltaram, olharam em redor uma última vez, depois o cara chegou perto de mim, abriu novamente a gaveta da mesinha de luz que estava ao meu lado – correu por todo o meu corpo um calafrio gelado, totalmente gelado –. Senti que ia surtar que ia pular da cama e pedir, por favor, pela vida do meu filho, pela minha. Pensei em falar que podia arranjar mais dinheiro, o que quisessem, mas só queria continuar vivendo, queria criar meu filho. Pensei que talvez pudesse atacá-los, fazer uma chave de Jiu Jitsu neles. Quando eu ia ao colégio praticava artes marciais, era um aluno aplicado, mas esse antecedente não podia garantir que eu sairia triunfante nesta luta que envolvia minha vida. Pensei muito ingenuamente que um samurai surgiria das profundezas do meu ser e salvaria minha pele. Fiquei, em frações de segundo, em pânico e angustiado. Tive medo de endoidar naquele instante e sair gritando como um louco, qualquer coisa sem sentido, articulando frases desconexas, de fazer piada da cara deles, de chamá-los de babacas. No entanto, contrariamente a todos os impulsos que senti, consegui, racionalmente, ficar com o meu plano inicial. Mantive-me, a custo de muito esforço, em total quietude, uma dissimulada frieza tomou posse da minha aparência – Ele tirou um relógio, o único objeto que restava naquela mesinha. Alumiou uma vez mais o meu rosto. Sinto a luz do modo que deve sentir um cavalo o ferro quente vermelho de quem o marca com fogo, a luz queima meu rosto. Minha alma, minha tranquilidade falsa, todas as minhas certezas são abaladas. Ele toca no meu ombro, chega bem perto do meu ouvido, coloca o metal frio de uma pistola na minha nuca – sinto, já não medo, mas uma súbita indiferença, eu estou rendido, desacorçoado e sem esperanças, meu corpo todo está contraído, tenso, rígido, sinto meu pênis duro. Vejo o rosto burlesco da morte, seu sorriso de escarnio me apavora, sou um simples sofredor frente à sua figura – ele diz baixinho:
– Fizeste muito bem em fingir que estas dormindo.
O desgraçado fica em pé. Caminha em direção à porta do quarto. Depois escuto passos no corredor, na sala. Finalmente não ouço mais nada.
Miguel Salvador Lemos Baladan é professor de Literatura hispana e de língua espanhola. Possuo um mestrado em Letras (UFRGS) e atualmente estou cursando o doutorado, também em letras. Sou autor do livro Camilo José Cela contra la Guerra Civil (2019), assim como possuo diversas publicações de artigos sobre crítica literária.
