O QUE VALE É A INTENÇÃO, por Jorge Rein
Este conto faz parte do livro
“De fogos-fátuos e de águas-furtadas”,
atualmente em processo de edição.
De qualquer forma, isso pouco interessa. Independentemente de teoria ou versão, o fato incontestável é que Thor desde logo conheceu os efeitos do espírito no corpo, entendendo o espírito na líquida acepção. Tão cedo que o seu metabolismo assimilou tal condição com a naturalidade com que são aceitos normalmente, pelo ingênuo organismo dos infantes, o cálcio, a vitamina C efervescente, o leite de magnésia ou o óleo de fígado de bacalhau, que é bem pior.
Os sábios conselheiros, que eram outros na época, porque não há academia que garanta de fato a imortalidade, encararam a educação de Thor com enorme receio e uma proporcional dose de compaixão. Temiam, mais que nada, o provável fracasso da missão de instruir, em qualquer um dos riscos próprios da profissão, um garoto que emborcava uma garrafa térmica de aguardente na hora do recreio, enquanto seus colegas se lambuzavam de achocolatado e se empanturravam de alfajor.
Aparências enganam. A sobriedade, às vezes, não passa de ilusão. No teste matemático que precedia os ritos de iniciação, Thor foi o único da turma que conseguiu acertar na contagem das patas do cavalo de Odin, o domador. Nunca ficou bem claro se apesar ou por causa da visão embriagada. O fato é que acertou.
E, de acerto em acerto, foi adquirindo o domínio das lâminas, mostrando e demonstrando, ao respeitável público, o aço inoxidável da sua vocação. Os raios que emanavam dos seus dedos de ferro rasgavam o ar com tanta precisão que um deles poderia cair, se assim o desejasse, exatamente no mesmo ponto do anterior, contrariando o ditado popular que, certamente, foi criado por povos que jamais assistiram à exibição de Thor.
Mesmo assim, nem tudo foram flores regadas a cachaça na infância de Thor. Excluído do convívio social pelos pais dos colegas, que tentavam proteger as suas proles do contágio imoral, afastado das rodas dos seus pares, preferindo as dos bares, restou-lhe apenas a companhia de outra figura ímpar: o feto de um anão macrocéfalo, de membros atrofiados, que pilotava um triciclo toscamente adaptado para sua condição, atropelando moças alvoroçadas enquanto arremedava, com peidos afinados, o ronco de um motor.
O tempo foi passando e até o anão cresceu, graças aos deuses não ainda o suficiente para comprometer o exercício apropriado da sua ocupação de bala humana, a legítima carne de canhão. Uma prova empolgante, para os aficionados, o arremesso de anão. Mas nada comparável à perícia de Thor chovendo canivetes em volta de uma deusa seminua e impassível, contornada de adagas, renascida entre os gumes sem medo ou arranhão.
Mais tempo se passou, Thor conservado em álcool assim como outros espécimes conservam-se em formol. De fontes inseguras reza a história que foi no intervalo entre duas talagadas de aguardente que desposou Fidélia, sua assistente, nem tanto por amor. De profunda que era a sintonia entre ambos, de incontestável que era a interdependência da dominada com o dominador, dispensava o afeto para render tributo a um princípio maior. E o hálito cortante do macho possuidor rasgou a carne da fêmea, rendendo força e cólera, frutos desse sublime desamor.
Se ainda não foi feito, deveria tentar-se a canonização de dois novos provérbios. Primeiro: existe uma bainha para cada adaga. Segundo: não há faca que resista a um bom amolador. No caso, foi Fidélia que amolou. Amolação de cama e picadeiro em que a relação se arrotinou. Indiferente ao trago, menos por tolerância do que por convicção de que é sempre mais confiável um bêbado conhecido do que um alcoólico anônimo. Tem muito casamento duradouro baseado em coisa pior, outros que não.
Basta um botão: o anão, por exemplo, enrabichou por conta de Natacha, a contorcionista ucraniana, e a tal ponto chegou sua paixão, que os anais desta história não registram mais nenhuma heroína que tenha engarupado na Harley Davidson. E foi mútuo o agrado, por não dizer tesão. Ele, quem sabe, animado com o ineditismo que a profissão da moça garantia no capítulo referente às posições. Ela, talvez, acreditando em lendas que descrevem certo atributo da masculinidade como guardando, ou melhor, exibindo relação inversamente proporcional à estatura. Mesmo assim, o matrimônio não vingou. Vingou-se foi Natacha que, enciumada, afrouxou um parafuso nos arreios da moto, provocando a indiferença dos freios ao nervoso comando do patrão. O anão, em consequência, espatifou. Traumatismo ucraniano, disso que ele morreu.
Por causa da tragédia consumada, Thor teve o privilégio de enxergar um par de coisas que o comum dos mortais, numa vida de olheiro sempre alerta, não chega a presenciar. Uma: enterro de anão. Duas: a falsa tolerância da fêmea que acumula, mansamente, a contabilidade dos vícios do parceiro até que, de repente, não dá mais. Olhou alternadamente Fidélia e a garrafa e concluiu, habituado que estava à filosofia sentenciosa de bar: uma das companhias ia ter que largar. Um dilema crucial.
Já na manhã seguinte dispensou o ritual do gargarejo com genebra, com o qual normalmente acabava de acordar. Profilaxia brava de tontear os germes e as bactérias que, no ronco da noite, tinham proliferado na sua fauna bucal. Não doeu quase nada, fora um gosto esquisito, mais nimbo do que cirro toldando o céu da boca. Pensou que fosse o cúmulo. Não era. A tormenta ainda estava por chegar.
E aos copos foi largando, pouco a pouco, ou talvez vice-versa, que dá igual. De início se encantou com a euforia, mas o que é bom não dura, dura lex. De tanto se engrolar em língua e raciocínio, foi perdendo o comando para um outro que lhe andava por dentro, um íncubo de gelo que as febres de Fidélia já não se permitiam derreter. Matrimônio on the rocks. A abstinência é um vício contumaz. Quanto mais no seu caso, em que o metabolismo adorava correr na contramão. Em algumas semanas recebia a visita de tremendos delírios. É fogo, dizem que ele chegou a falar com seus botões, que nem mais conseguia abotoar. E assim passava os dias esticando o fio da ressaca matinal. Tinha que arrebentar.
Sustentam as más línguas – boas línguas não há – que foi de véspera que a tragédia engordou até estourar, feito peru em natal. Folga da companhia, deserto o picadeiro, Thor resolveu ensaiar, coisa que nunca antes. Mas, de estranho que andava, nem era de estranhar. Ficou enfrentando a tábua em que as ranhuras, em nome da perícia, já tinham entalhado, como em xilogravura, a silhueta precisa da mulher. Na zona abdominal duas trilhas paralelas, a mais ampla das duas comportando o inchaço do ventre em gravidez. Cicatrizes da história, biografias inscritas na madeira, tábua rasa, jamais da salvação. E tremia o danado empunhando suas lanças sem cabo, jogando ao Deus dará. E Deus não deu.
Acreditam os sádicos, que nas artes circenses são legião, que ao encostar-se à tábua, na hora da função, Fidélia sentiu as farpas da recente ferida da madeira pinicando-lhe as costas no seu quadrante esquerdo superior. Ela não confirmou. Nem é certo que tenha percebido o tremor do reflexo da lâmina de aço piscando estrelas na negridão da cúpula de lona. E mesmo que tivesse percebido, já era tarde demais e é público e notório que the show must go on. Então aconteceu.
O dilema se esvai quando um dos termos falha por ausência absoluta ou deserção. Em consequência, Thor recaiu em plenas sobriedades recuperando, em álcool, sua melhor condição. Na viuvez, dispensando o feminino auxílio, foi ele que criou Força e Cólera, filhas cujo crescimento registrou com sucessivos talhos de mestria no painel em que o sangue de Fidélia entranhou feito seiva e depois coagulou.
Existem os que afirmam que até hoje, ao menos com as facas, ele não mais falhou. Há também os que juram que errar é humano, enquanto Thor é um deus e, assim sendo, malgrado as aparências, ele jamais errou. Cada um vende seu peixe como pode, mas nem sempre se arranja comprador. O que vale é a intenção.
Jorge Rein é contista e poeta, além de dramaturgo.
