O SEGREDO DAS VIOLETAS, por Cristiano Fretta

Ana, entre as plantas, envelhecia. Caminhava no verde denso da frente de casa e sentia em cada passo trôpego de seus 85 anos a certeza de que o infinito também ficava grisalho. O tempo lhe era qualquer coisa abstrata que se perdia nas dobras da rotina: envelhecer, cuidar das plantas, deixar crescer a solidão em volta da vida, cultivar uma esperança profundamente teimosa, deixar-se levar pela tristeza visceral de mãe velha e de vez enquanto distrair-se assistindo a uma televisão.

Entre dois prédios, a casa de madeira há décadas pintada de verde contrastava com as imensas construções espelhadas e com a pressa dos homens e mulheres jovens que à hora do almoço caminhavam em busca de alimento que lhes sustentasse a tarde. Para Ana, as tardes eram sempre as mesmas plantas. Os sons do balançar das folhas eram uma dor inexplicável. Com a ponta do chinelo ela traçava na areia palácios em que vivia feliz para sempre com o seu filho. Disso ela nunca se cansava, pois o cansaço não cala a luta das horas e a coragem não soa nos ponteiros do relógio. Espadas de São Jorge. Buxinhos. Heras. Cactos. Cicas. Murtas. Babosas. Agaves. Samambaias. Palmas de Santa Rita. Rosas. Antúrios. Hortênsias. Lírios. Abacaxis-roxos. Gerânios. Cravinas. Camélias. Bromélias. O segredo das violetas. A lembrança do filho de Ana era sempre como se fosse a primeira vez, pois a saudade não tem corpo nem veias nem cabelos, a saudade não envelhece, a saudade não entra pela porta dizendo pois é, hoje me surgiu o primeiro cabelo branco, a saudade tem a força de um cavalo e a transparência de um deus. A saudade de um filho. As plantas no quintal e a saudade de um filho.

Antes de dormir, quando fazia suas orações, Ana pensava que Deus deveria ser mesmo um desocupado, pois havia inventado o amor no mundo. Mãe, olha que tu ainda vai entrar para dentro desse forno, de tanto bolo que tu faz. Mãe, esse cheiro de tinta tá me matando, por que o pai tem essa mania de pintar a casa todo ano? Eu deixei a chaleira fervendo de novo, mãe, não acredito, a gente sempre tem que cuidar para não deixar a chaleira ferver. Pode deixar, mãe, que amanhã eu te ajudo a plantar as violetas no quintal. Não se preocupa, mãe, ela é uma guria legal, tu vai gostar. Sabe, mãe, quando eu for um arquiteto famoso, vou colocar plantas em todos os lugares, que nem tu gosta. Mãe, nunca te pedi nada, esconde bem escondido essa caixa para mim, por favor. Amanhã eu vou chegar tarde, mãe, tenho reunião com o pessoal da faculdade, não precisa te preocupar.

Mas o filho não voltou para casa. Os dias foram alheios ao desespero de Ana e seu marido. Sumido o filho: parte de si devorada no desconhecido das coisas que insistiam em acontecer no dia a dia. O sol e sua intransigência de amanhecer sempre soberbo, inquestionável, alheio. Quando os dias se passavam e o desespero a afogava, Ana tinha vontade de xingar o sol. O marido morreu assim, de repente, cansado após alguns meses de peregrinação em delegacias e quartéis. Morreu e deixou para Ana uma pensão como para dizer fique em paz para chorar nas plantas do canteiro, eu não quero conseguir aguentar, não sei mais quem é fera e quem é homem. E assim há 45 anos Ana chorava, chamando seu filho de volta. Já havia se atirado aos coturnos do carrasco. Era o seu filho, mas também era o seu terror. Depois de alguns meses após a morte do marido, Ana passou a procurar o filho somente dentro dela, pois ali era o local em que de fato ela o encontraria: Ana havia cansado de beber suas lágrimas nas mãos dos outros e, quando à noite esperava pela chegada da morte, a vida parecia estar suspensa por um tênue fio, pois mais assustador do que o caminho é a estrada da saudade.

No entanto Ana, como um rio, havia sido desviada novamente para outros estranhos tempos. Foi assim que ela, trôpega, viu a multidão se aproximando ao longe, em um domingo de sol. Sabia, pela televisão, que aquilo estava acontecendo não só na cidade, mas também em todo país. A televisão, no entanto, poderia ser desligada com o toque de seus dedos finos, mas nada parecia ser capaz de conter aquela massa verde e amarela que se aproximava e fazia Ana a ir até a frente de casa e apoiar-se no portão, observando o seu avanço. O avançar em vozes e gritos, passos certeiros e firmes, uma multidão carregando sobre si a lona invisível, a imitação inconsciente de outras décadas, caminhando e proferindo gritos, a massa de gente verde e amarela, avançando pela rua. Faixas. Cartazes.

Quanta luz havia naquele domingo, mas esquecido o corpo do filho estava em algum lugar. Ana leu um cartaz que vinha bem à frente, segurado por uma meia dúzia de verdes e amarelos: ditadura militar. A crueza é a carne na mesa, sem delírios, sem vendas, sem ódio, sem amor, apenas a coisa, ali, na frente, a carne cortada, as vísceras expostas, as entranhas abertas, os cheiros a inundar o nariz, o nojo a não pedir licença alguma.

Ana abriu o portão e em curtos e compassados passos foi até o meio da avenida, as violetas no chão, a terra revirada. Sentia as vozes e os passos se aproximando. Estava colocada bem no meio da via, e a aproximação da multidão fazia Ana respirar fundo, levantar a cabeça e olhar o céu azul. Baixou a cabeça e quase já podia ver os olhos dos que se aproximavam e a palavra militar estava cada vez mais próxima, aproximou-se tanto, a multidão teve que parar, Ana e seu corpo magro e frágil bloqueando o caminho. As décadas lhe caíram sobre os ombros, e Ana não encontrou nenhum motivo para tentar suportá-las. Já não mais queria que a vela continuasse queimando no dia seguinte: não se importaria se palavras descontroladas ferissem seus ouvidos ou mesmo seu corpo.

Então Ana disparou três vezes em direção à multidão. Mesmo depois de tanto tempo, o revólver ainda funcionava. Cada disparo jogou o seu braço com violência para trás. A multidão se dispersou aos gritos. Dois homens correram em sua direção. Um imobilizou o seu braço e tirou a sua arma enquanto o outro, com um chute, derrubou-a no chão. A força dos pontapés que surgiam de todos os lados quase que imediatamente a conduziram à escuridão, à sua redenção. E em meio aos rostos, aos braços, aos chutes, em meio aos verdes e amarelos que lhe tiravam a vida, uma última visão surgiu-lhe: era o rosto de seu filho, nítido como uma rotina qualquer, os chutes e os pontapés não o atingiam. Ele se ajoelhou ao lado de Ana e disse: vem morrer comigo, mãe. A verdadeira ternura não se confunde com coisa alguma: é silêncio.

Cristiano Fretta nasceu e mora em Porto Alegre. Graduado e Mestre em Letras pela UFRGS, é professor de Língua Portuguesa e Literatura em escolas privadas. É autor das obras Chão de Areia (2015), Tortos Caminhos (2017) e Crônica de um Mundo Ausente (2022). Colabora com as revistas Parêntese, Sepé e Entre Poetas & Poesias, além do Jornal Extra Classe e dos portais Literatura RS e Passa Palavra. Também é músico e compositor.

FICÇÃO

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