REFOGADO À MORENA, por Catia Schmaedecke

De repente o aroma do refogado na frigideira invade meu olfato e me desperta para o inesperado. Ouço com mais afinco o frigir do alho misturando-se à cebola, ao pimentão e à pimenta do reino. Deixo para acrescentar por último os tomates e o manjericão frescos. Provo o molho para certificar minha capacidade de acertar o sal, e conquistar pelo sabor. O cheiro de comida gostosa, o mesmo de minha infância, rodopia pela cozinha antes de sair para a sala e invadir todos os cantos da casa. De imediato olho para os lados à procura da figura materna, detenho-me na mão que segura a colher. Embora se pareça um pouco, não é a de minha mãe. Os temperos no fundo da panela continuam exalando o seu perfume em meio à nuvem de vapor, alheios à minha perplexidade.

Ainda ontem eu corria pelo pátio atrás de borboletas, os pés pequenos e descalços sofriam em contato com as pedras, mas eu só parava em duas ocasiões. Quando encontrava uma joaninha ou quando ouvia a voz da mãe ao bradar que o almoço estava na mesa. Na minha casa aquela foi uma época de escassez de alimentos, tudo o que a mãe cozinhava era degustado devagar, para espichar o tempo e enganar o estômago que iniciava a sua digestão com avidez pela próxima refeição. Depois que o pai foi levado pelo câncer, a preocupação da mãe com a nossa subsistência tornou-se constante, a fartura foi-se embora junto com ele e deixou-me pele e osso aos quatro anos de idade. A mãe foi pai, foi avó, e no final foi minha filha, mas, sobretudo foi minha amiga, minha melhor amiga.

Refrigerante surgia em nossa mesa apenas em datas comemorativas quando, entre uma garfada e outra, segurávamos o copo com uma das mãos para que não escapulisse levado pelo vento. Nas noites frias de inverno gaúcho, antes de dormirmos, ela pegava as minhas mãos entre as suas, unindo-as em oração, e ensinava-me a rezar. Quando a baixa temperatura deitava geada sobre a coxilha e uma tosse persistente quebrava o silêncio da madrugada, minha mãe preparava-me uma xícara do seu “chá de amor”, uma mistura de cor amarronzada e gosto adocicado, quente o suficiente para cessar a tosse, o bater de dentes e me fazer pegar no sono em questão de poucos minutos. Quando indagada sobre o que havia no chá milagroso, ela respondia: “Amor”.

Na época de infindáveis exercícios de paciência, o pão sovado sobre a mesa da cozinha levava uma eternidade para ficar pronto. Para envolver-me com a atividade e assim distrair a fome, a mãe ensinava-me a esculpir a massa de pão, formando pequenos bonecos de olhinhos de feijão. Em meu sonho recorrente um pelotão fumegante de “soldados olhos de feijão” saía do forno marchando em direção ao prato. Sem coragem de abocanhar-lhes braços e pernas, eu apenas os observava enquanto esfriavam suas cabeças.

Às vezes ouvíamos alguém bater palmas em frente ao portão de casa. Certo dia a mãe resolveu atender o vendedor de enciclopédias. O homem franzino de olhos tristes e gravata desbotada entrou, sentou-se, sorveu um cafezinho e antes de ir embora, deixou quatro volumes de enormes e pesados livros de capa dura que falavam sobre a geografia mundial. A mãe que, mal havia aprendido a escrever o próprio nome, espichou o olhar desolado para os livros em cima da mesa e num arroubo de alguém que havia sido diplomada pela vida proferiu a seguinte frase: “Esse mês teremos que comer sopa de letrinhas”.

Agora, às voltas com o preparo do almoço, percebo minha mãe ressurgir em mim e decido assim, sem mais nem menos, que já está na hora de batizar o prato preferido do cardápio da saudade.

Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance “A Casa da Grande Colina”. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.

CRÔNICA

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