SOBRE O ÚLTIMO ANIVERSÁRIO DE ÂNGELA, por Anaí Bueno
A lasca de sardinha caiu sobre o telhado. Por pouco não atingiu Ângela. Justo no dia do seu aniversário. Estilhaçou os andares da casa, desfaleceu no meio da sala. A prima mais nova, Carola, quatorze anos recém-completos e com o apetite de um batalhão, engolia a pizza caseira quase sem mastigar. Sentada na cadeira, instalada ao lado da casa de Ângela, a adolescente engoliu mais um pedaço, deixando escorregar o pescado pelo canto da boca.
A mãe de Carola, num lance de xadrez, puxou-a pelo braço, Olha o que você fez, meu anjo. A mãe de Ângela largou o bolo sobre a mesa, Está tudo sob controle, mas se precisar de um médico para a sua menina, tenho um de confiança.
O cheiro e o óleo invadiram a casa de Ângela. Abriram as portas da memória. O dedão do pé direito fazia círculos na areia. Não passe do joelho, a mãe gritou sob a tenda. O sal pinicou quando a garota entrou na água. Não resistiu. Entrou mais e mais. Um medo bom a cada onda. Cabeça e corpo imersos num lugar sem tempo. Ângela desmaiou. Um cardume a carregou em procissão até a beira da praia. A mãe bateu com força na face da filha, Viemos aqui para comemorar seu aniversário de quatorze anos e não para você aprontar, vociferou.
Voltaram para casa, o cheiro dos peixes não saíram de Ângela. Não importava a quantidade de banhos, perfumes, essências e creme. Fedia. Pior: quando falava, o marulho acompanhava as palavras. Quem a escutava parecia ter uma concha grudada ao ouvido. Então a mãe de Ângela, prevendo um maremoto, andou com a filha a tiracolo por todos os consultórios da cidade.
Não, não deixaria que a menina rolasse por aí e tivesse que passar por tanta coisa na vida. Cuidaria muito bem da sua filhinha. Teria que haver um médico que tratasse aquilo. Tanto andou, tanto rezou. Em seis meses encontrou a cura. O médico informou que era uma virose de verão com consequências para a vida inteira. Por isso o tratamento, restrito à alimentação, teria que ser seguido à risca. E com cuidado para evitar afogamento após o efeito colateral.
Toda comida deveria primeiro ser mastigada pela mãe que, depois, com a própria boca, largaria o sustento entre os lábios da filha. Os líquidos tinham que ser suspensos por um tempo, a fim de que não houvesse incentivo à ideia de mar. Com os meses, o cheiro e o som da praia sumiram e a resposta do organismo aconteceu: Ângela diminuiu de tamanho. Em três anos era mínima.
Os pais encomendaram uma casa de boneca, instalaram-na no canto da sala, protegendo-a de eventual acidente. Ângela cheirosa. Falando fininho. Os passeios e as consultas médicas na rua sempre na bolsa, de preferência, da mãe. A vida seguiu sem entardecer. Até o dia do último aniversário.
Carola esfomeada, percebendo que a tia trazia o bolo com as trinta velas para os parabéns, enfiou o resto da pizza na boca, ocasionando a tragédia. Ângela lembrando o dia da praia e tudo o que aconteceu depois, quando deu por si, estava na palma da mão materna. Foi colocada dentro de um aquário vazio, reservado para os dias de faxina. Olhou para o alto e sussurrou para a prima:
– Você também tem vontade de mergulhar?
Então, na hora do bolo, a porta dos fundos bateu com a força das águas e as duas mulheres sentiram um cheiro que parecia ser o de peixe.
Anaí Bueno nasceu e mora na cidade do Rio Grande-RS, tem 41 anos, é formada em Direito, servidora pública, leitora e escritora.
