UM OBITUÁRIO SENTIMENTAL: Javier Marías (1951–2022), por Aguinaldo M. Severino

Javier Marías e eu quase nos encontramos por acaso um dia. Eu o reconheci pois havia sido apresentado a seus livros por uma pessoa que o conhecia muito bem, e desde o momento que essa pessoa, Cristina, me apresentou a ele, senti-me completamente enfeitiçado por sua prosa e passei a ler compulsivamente todos os livros dele que pude comprar ou alcançar. Nas três ou quatro semanas que antecederam sua morte, já tendo notícia de sua internação por conta de problemas respiratórios e por saber que ele era fumante há mais de cinquenta anos, fiquei um bocado deprimido, relendo seus livros e lamentando uma vez mais aquela chance que perdi há anos de conversar ao menos um pouco com ele, perda por covardia ou excesso de delicadeza, não sei, jamais saberei, ai de mim.

Javier Marías morreu recentemente, em setembro de 2022, poucos dias antes de completar setenta e um anos. Nasceu em Madrid, na Espanha, e era o quarto de cinco filhos homens de Dolores Franco, escritora e professora, e Julián Marías, o respeitado filósofo, grande especialista em José Ortega y Gasset. Ele poderia nem ter nascido, pois seu pai, que participou da Guerra Civil Espanhola no final dos anos 1930, foi preso e em pelo menos duas oportunidades esteve a frente de um paredão de fuzilamento. Talvez os fuzilamentos tivessem algo de encenação, encenados apenas para torturar psicologicamente os indivíduos ali perfilados, mas, de qualquer forma, Julián Marías foi expulso da universidade, proibido de exercer a docência ou o jornalismo em terras espanholas até o início dos anos 1950, o que gerou muitos aborrecimentos a sua família.

Javier Marías foi um dos grandes escritores de seu tempo, um escritor superlativo, seminal, criativo, que conciliava registros de uma erudição demoníaca com um fino entendimento das complexas manifestações da cultura popular. Seus longos parágrafos e digressões, seu inusual controle do tempo nas narrativas, sua capacidade de suspender a ação e oferecer ao leitor imagens vívidas dos estados emocionais de seus personagens destacam-se dentre entre toda a prosa contemporânea produzida nos últimos cinquenta anos, em quaisquer línguas das quais eu tenha notícia. Foi traduzido para cerca de quarenta idiomas e seus livros alcançaram milhões de exemplares vendidos. Muito respeitado pela crítica especializada e estudado por acadêmicos de vários países, alcançando assim inegável reconhecimento público, também alcançava cativar leitores comuns para as crônicas semanais que publicou durante mais de três décadas, quase ininterruptamente. Para mim, ele, ao morrer, juntou-se ao panteão daqueles que deveriam ter recebido um prêmio Nobel de literatura, como James Joyce, Marcel Proust, Vladimir Nabokov, Jorge Luís Borges, Philip Roth e Franz Kafka.

Javier Marías formou-se em Filologia Inglesa na Universidade Complutense de Madrid e como todo sujeito talentoso desenvolveu muitas habilidades, pois além de prolífico escritor (de romances, contos, crônicas e ensaios) foi também ator, roteirista, um premiado tradutor, respeitado professor universitário, editor, mecenas literário, cinéfilo, polemista temível, grande interprete da realidade de seu país e de seu tempo, conferencista, bibliófilo e acadêmico da Real Academia Española. Não posso esquecer de registrar que ele também foi rei, o rei Xavier I do reino de Redonda, uma ilha do Caribe, mas essa é daquelas histórias mirabolantes demais para ser incluída nesse pequeno texto.

Por isso mesmo, ou seja, como não há espaço para detalhar aqui todos os sucessos que ele alcançou em cada uma das atividades citadas acima, citarei apenas algumas delas, tentarei ser o mais conciso possível. Javier Marías publicou seu primeiro romance, “Los dominios del lobo”, quando tinha dezenove anos, em 1970 e o último, “Tomás Nevinson”, pouco mais de um ano antes de morrer. No total produziu dezesseis romances, muitos deles premiados. Dentre os romances que mais gostei não posso deixar de citar “Tu rostro mañana”, um portento de 1600 páginas; “Corazón tan blanco”; “Así empieza el mal”; “Berta Isla”, “Los enamoramientos”; “Negra espalda del tempo” e “Todas las almas”. Seus principais romances, certamente seis ou oito deles, foram traduzidos para o português, mas não tenho notícia se o foram seus livros de contos ou de crônicas. Seus romances são povoados por vários personagens que se repetem ou, talvez melhor dizendo, passam por metamorfoses, que acompanham a história da Espanha dos últimos cinquenta anos.

Esses personagens demonstram que Marías era um leitor fino da realidade, que sabia acompanhar comportamentos, tendências e bem contrastar os homo sapiens e as tecnologias por eles manipuladas. Em quase todos seus romances há protagonistas que trabalham com tradução, personagens que emulam uma das grandes questões contemporâneas, que é nossa capacidade (ou antes, de nossa grande dificuldade) de nos comunicarmos adequadamente. Ele também faz certos protagonistas em suas histórias terem a inusual capacidade de interpretarem rapidamente a psique e a moral de seus interlocutores, uma habilidade prática que é muito necessária no mundo contemporâneo, habilidade que é explorada por grandes corporações e serviços de inteligência no mundo, um fenômeno social que Marías soube antecipar literariamente, como todo bom antena da raça costuma fazer, assim como já nos ensinou Erza Pound. Marías era também um excepcional contista. Recomendo aqueles reunidos em “Mientras ellas duermen”, “Cuando fui mortal” e “Mala índole”. Dentre seus livros de ensaios literários recomendo aqueles dedicados às obras de Cervantes, Faulkner e Nabokov, mas há vários outros, dedicados a uma miríade de escritores. Entre 1988 e 2022 escreveu crônicas semanais que foram publicadas tanto em jornais de várias cidades espanholas quanto da América Latina. Reunidas em uma vintena de livros, essas mais de oitocentas crônicas contam boa parte da história da cultura, política, economia e mundanidade espanhola dos últimos trinta e cinco anos. Elas também falam de seus hábitos de escritor, de suas relações familiares, de seus anos nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França; de suas aventuras na Catalunha, em Veneza, em Madrid e em Sória; de suas dificuldades com máquinas de escrever, celulares, decisões e normas dos governantes de plantão, hotéis proibidos para fumantes, dos trens progressiva e estreitamente vigiados. Essas crônicas certamente serão lidas por muitos anos. Dentre os autores que traduziu destacam-se Thomas Hardy, Laurence Sterne, Joseph Conrad, William Butler Yeats, Wallace Stevens, William Faulkner e Vladimir Nabokov. Como editor, por meio de seu selo Reino de Redonda, contribuiu para reeditar obras importantes que haviam sido abandonadas ou quase esquecidas.

Antes de finalizar gostaria de repetir um causo que já contei em outro lugar, mas que explica parte de minha grande tristeza ao ter notícia de sua morte citada no parágrafo inicial e que certamente lamentarei por muitos anos ainda. Trata-se do dia em que perdi a oportunidade, em fevereiro de 2015, de cumprimentar don Javier Marías. Eu o vi de perto, do outro lado da calle Cava Baja, em Madrid. Estava eu entre amigos, éramos Lola, Manolo e eu, os três saindo da Taberna e Posada de la Villa, onde havíamos tomado um par de copas e fazíamos planos para jantar. Lola chamou nossa atenção e disse que o Marías estava ali perto, em nossa diagonal, do outro lado da rua, fumando calmo seu cigarro debaixo do dintel de uma porta. Fiz menção de irmos lá cumprimentá-lo, porém Lola lembrou do quão zeloso de sua privacidade era ele. Estava frio naquele inverno e o lusco-fusco do início da noite fazia as luzes bruxulearem. Ficamos uns minutos ali parados, indecisos, em quase transe. Manolo bromeava como sempre faz, mas nos incentivava a cruzarmos a rua e eventualmente recebermos nossa cota de impropérios marianos (que sabia ser cruel com as palavras). Já Lola lembrou de uma amiga que não foi exatamente bem recebida em circunstâncias parecidas com a nossa. Fomos covardes, ai de nós, decidimos deixá-lo na paz de seu santo cigarro. Seguimos no sentido oposto, Cava Baja abaixo e ficamos um bom tempo falando dele e de seus livros. Manolo ria de nossa continuada timidez. Nem Lola nem eu sabíamos explicar o que de fato nos impediu de atravessar a rua, mas já era tarde. Como teria sido divertido ter ao menos balbuciado um par de frases toscas em portunhol com ele naquele dia. Paciência.

Bueno. Como sou um entusiasta de seus livros, devo dizer que li todos eles, sim, todos eles, alguns mais de uma vez. Em um blog que mantive por muitos anos, o “Livros que eu li”, há pequenas resenhas de cinquenta e dois diferentes volumes. Para o leitor curioso, em frente, bom divertimento!

Aguinaldo Medici Severino (São Bernardo do Campo – SP, 62 anos) é doutor em Física e professor da UFSM.

ENSAIO

1 comentário Deixe um comentário

  1. Muito bom, Aguinaldo!
    Ao produzir teu texto, fizeste o que descreveste sobre o fenomenal escritor espanhol, que é a habilidade de conseguir colocar o leitor dentro da cena, ao relatares teu quase colóquio com Javier Marias.

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