UM TALO DE AGRIÃO SELVAGEM, por João B. Cabral
Os tubos vencidos de oxigênio não servem para nada, são apenas lixo, é o que ele me dizia depois de tossir um pouco enquanto pedalávamos pela periferia da cidade em busca do agrião. A paisagem aqui há muito não assusta ninguém e expedições ao agrião selvagem são cada vez mais comuns. O agrião, ainda poucos sabem disso, é o melhor remédio para a congestão pulmonar e os hospitais já não têm apartamentos disponíveis para acomodar a mais ninguém. “Ali”, ele fez com que eu virasse os olhos na direção do sol poente, apontando os antigos canais de esgoto. “Ali temos agrião que a fará respirar por pelo menos um mês.”
Minha sacola já estava cheia dos mesmos ramos alaranjados que meu avô fez brotar no pátio de sua casa muito antes de eu nascer, e agora finalmente retornaríamos. Precisamos voltar à cidade antes do crepúsculo, que é mais ou menos a hora em que as patrulhas fecham as estradas e após o que só os próprios patrulheiros podem passar livremente. Até lá, estamos por nossa própria conta e, se algo nos acontecer, não haverá a quem reclamar. São as normas da jurisdição. Mesmo assim, antes de subir na bicicleta, ainda registro uma fotografia para a coleção de minha filha, mas eu só faço isso porque tenho essa câmera analógica, presente que Abel me trouxe de uma de suas últimas viagens à China. As máquinas digitais fazem backups de tudo e não é absolutamente seguro confiar nas empresas de backups ou de segurança, não é incrível? O melhor é estar longe de sua vista e é isso o que eu também tenho tentado fazer.
Abel quer sair dali o quanto antes e deixo que vá um pouco adiante de mim. Não é que eu goste de ver a desolação dos antigos bairros populares, mas quero notar que antes da contaminação havia pessoas morando ali, crianças inclusive. Diante a uma praça, fico olhando os brinquedos e equipamentos destruídos pela ação do tempo e das pessoas que ainda vêm eventualmente aqui. Um balanço pende de uma corrente arrebentada e o cavalete de uma gangorra está completamente depenado. Fico imaginando como conseguiram empenar aquele tubo de metal. Tudo o que havia de madeira foi levado para servir de combustível das fogueiras de algum dos invernos severos da última década; o resultado é um lugar lotado de árvores jovens e baixas, mas as pessoas não voltarão a viver ali, a não ser que se descubra formas de reverter a contaminação atmosférica. Agora elas vivem, quer dizer – vivemos, sob a segurança das firmas de medicamentos e suprimentos, em torno aos hospitais, nos edifícios.
Hoje quase ninguém sabe ou quer saber, mas já fomos milhões de pessoas por aqui e a extensa região subtropical a mais populosa delas, lá onde há apenas areia e quase nenhuma vida. Como os livros antigos e tudo o que é de celulose foi tomado para combustão carbônica e as novas gerações foram todas ensinadas a partir das unidades digitais produzidas para o governo, muito pouco se sabe da história antiga. Só o que há são filmes e fotografias que podem facilmente ser adulterados. Minha mãe foi um dos muitos professores desviados para a enfermagem, como a maioria deles foi. Para ela, não houve alternativa. Era isso ou não ter trabalho. Se os esforços não convergissem para salvar as crianças, em poucos anos não sobrariam muitos para trabalhar e todo o país pararia de vez.
Mascando um talo com as pontas dos dentes, pedalamos de volta à oficina. Ainda não contei, mas vivo no alto de um desses novos edifícios. Custou-me a economia de anos, mas é inteiramente meu. Meu trabalho é nas oficinas de conversão elétrica. Sou um daqueles inúmeros técnicos uniformizados que as grandes firmas recolhem pela manhã cedo e devolvem às casas, em ônibus lotados, no fim da tarde. Não faço um mau trabalho, tanto que já cogitaram em me oferecer uma função de controle, mas há tantos controladores no mundo que o seu trabalho acabou por ficar tedioso e burocrático demais. Eu prefiro carregar rolos de fio a passar o dia sentado diante das telas dos computadores. Além do mais, assim eu posso conversar com as outras pessoas, o que de outro modo não poderia. Os controladores não podem falar, apenas escrever. Apesar de terem melhores salários, é uma vida miserável a que eles levam. Quando eu disse a Abel que recusei o convite, ele pareceu surpreender-se: “Você só pode estar louco…”, mas eu duvido que mesmo ele tivesse tomado outra decisão. No fundo, percebi que ele aprovou meu gesto, apenas não queria deixar isso claro. Abel e seus enigmas.
Depois da água reprocessada vendida em garrafas, o oxigênio em tubos foi o toque de Midas dos empresários gananciosos; com um custo exorbitante, rapidamente eles ficaram milionários. Após as primeiras denúncias de que os tubos também estavam contaminados, houve uma corrida sem precedentes aos medicamentos de descongestão pulmonar que logo mostraram-se ineficazes. Graças a um grupo de pesquisadores dissidentes que pesquisava a saúde dos cavalos, descobriu-se que muitos vegetais poderiam melhorar significativamente a respiração humana, entre eles o agrião selvagem. O ar atmosférico, embora se possa respirá-lo livremente, vai depositando no interior dos pulmões substâncias inflamatórias que causam um tipo de asma crônica de controle impossível. Isso já tem pelo menos trinta ou quarenta anos: tempo suficiente para uma geração de pessoas completamente dependente de medicamentos.
Foi Abel quem me falou do agrião selvagem. Ele disse que conhecia alguém que se curou apenas mascando as folhas e talos e que muitas pessoas o estão utilizando, embora quase ninguém acredite que haja cura fora dos medicamentos. Ele fez com que eu tentasse tratar Sofia assim e a verdade é que vimos resultados bons e rápidos. Depois, conseguiu passes especiais para buscarmos as plantas nos charcos da periferia da cidade, onde só há ruínas abandonadas desde as últimas migrações. Ele não me diz de que maneira, mas sempre consegue informações e novidades. Eu não o importuno com isso, pelo contrário, mas acho que ele também faz parte de algum grupo dissidente; acontece que Abel é sereno e tranquilo e o único amigo em que posso confiar de verdade.
Chegamos de volta à cidade antes de anoitecer e as ciclovias estão lotadas de gente. Nos domingos, todos querem fazer exercício para desatrofiar os músculos. Abel já foi campeão de ciclismo e, não fosse a doença que ele tem no quadril, eu não teria como acompanhá-lo. “Precisamos ser rápidos”, eu lhe digo. É que se não chegar a tempo, minha filha Sofia acabará ingerindo mais um dos comprimidos para conseguir voltar a respirar.
Eu já tentei cultivar o agrião selvagem em casa, em caixas de papelão, mas as folhas nascem ridiculamente pequenas e os talos atrofiados não servem para nada. Por isso, o que resta fazer é buscar o agrião dos esgotos e torcer para que a notícia não se alastre, porque então não haverá o bastante. A sorte (ou azar, nem posso saber) é que o controle de informações está cada vez mais rígido. Os canais de vídeo disponíveis são todos de duas ou três corporações e o mesmo acontece com as plataformas multimídia. Pensar que tudo isso começou ainda no séc. XX e que havia milhões de páginas e conteúdo absolutamente livre é mesmo uma coisa impressionante. Não é que não os haja mais, mas uns são cópias dos outros e, no fundo, as diferenças de enfoque são cada vez mais indistinguíveis.
Prometi à Sofia que hoje à noite não assistiríamos documentários nem filmes em série, mas veríamos as fotografias e outro dos filmes que Abel diz conseguir com alguém do museu, seu antigo local de trabalho. Sofia mal consegue esperar e está aflita por saber o que ele preparou dessa vez. As únicas imagens permitidas para os displays são as provenientes das unidades de ensino ou de entretenimento, mas os cards que Abel consegue são os bons momentos da semana e uma das poucas oportunidades de usar o display para outra coisa que não a programação de entretenimento ou aprendizagem.
“Não esqueçam das fotos”, ele disse. E seguiu o caminho desviando das outras bicicletas. Foi um dia cansativo, pedalamos muitos quilômetros, mas é sempre um prazer fazer isso com ele. Graças a ele, afinal, é que fiquei sabendo a respeito do agrião. Abel sempre tem uma informação nova, uma dica de alguma coisa. A última que ele prometeu foi me ensinar a, além de desconectar o display, fluir anonimamente, mas eu acho que isso deve ser mentira ou fantasia dele; nossas vidas virariam uma bagunça completa, porque até o abastecimento de comida e suplementos é controlado pela rede. Não estivesse começando a ficar um pouco velho, ele certamente teria um cargo importante, mas ele diz que não quer e nem nunca quis. “Melhor é um pinguinho de liberdade”, é o que ele diz. E eu só posso é concordar com isso.
Não é que Sofia deva ter um sexto sentido, afinal parece provado que isso não existe, assim como outras fantasias seculares, mas ainda não entendi como ela consegue saber que estou chegando antes mesmo de passar pelo sensor da porta de entrada. Meu telefone piscou mostrando o seu rosto enquanto subo pela escada escura. “Já estou chegando”, digo olhando para o pequeno display. Ela é mesmo uma garota intuitiva e está em pé junto à porta quando apareço do vão das escadarias. Vai ver essa é mais uma das comprovações fajutas dos institutos científicos.
“Conseguiu?”, ela pergunta. Digo que sim e ela emula um suspiro, mas ele não chega a completar-se porque o ar já está lhe faltando. “Entre, os entregadores deixaram as provisões da semana e dessa vez teremos até bolo de milho.”
“Milho? Mas de quando esse milho? Que eu saiba, não teve safra de milho neste ano…”, eu digo. Ela retruca: “Deve ser importado, talvez argentino. Venha, sinta só o cheirinho.”
As mesas estão prontas e sinto vontade de comer sem tomar banho, mas ela não permitirá. Vou ao chuveiro e gasto duas provisões de água. A multa virá descontada na próxima fatura. Eu não me importo. Ela já está mascando os talos e vejo-a, olhando pela janela, a noite já instalada. De costas para mim, ela pergunta: “Como era lá? É mesmo um campo fértil?” Eu lhe digo que sim e também que é inacreditável que alguém tivesse vivido mais naquele lugar, tal é o estado de penúria dos casebres abandonados e o peso do ar, contaminado de gases tóxicos. Tudo o que Sofia mais quer é ir comigo através da cidade e sair desse perímetro circunscrito, mas o estado de seus pulmões não permitiria. Além disso, os passes que Abel consegue são das firmas de desintoxicação e poucas mulheres trabalham nelas. Sem falar que os patrulheiros já andam desconfiando da proliferação de passes para além da jurisdição.
“Abel conseguiu fotografias antigas para vermos, mas vamos comer primeiro.”
Logo que eu disse isso, ela virou-se imediatamente para mim e abriu um sorriso que eu não via desde a última visita em pessoa das colegas de estudo. Sofia está sempre em contato com elas pelo display, mesmo depois de eu tê-la alertado sobre o que dizer ou escrever através do dispositivo. Elas conversam de tudo por ali e boa parte das aulas acontece assim, com tutores virtuais. “Que surpresa ele terá nos feito dessa vez?”, perguntou. “Não tenho ideia. Estou mais curioso com as fotografias. Parece que são daqui mesmo, acredita? Da virada do século. Ele disse que as conseguiu no museu.” Abrindo a vasilha e sentindo um perfume remoto de farinha de milho, falei com a boca cheia: “Com sorte, encontramos nossa antiga casa ainda em pé. Ou a casa do vô.” Pouco depois, pergunto a ela se guardou o agrião conforme o orientado. Ela confirmou e disse que o fez enquanto eu estava no banho; segundo ela, será o suficiente por quase um mês. “Esse milho hoje está com gosto de qualquer coisa, menos de milho de verdade”, comente. Ela fez um esgar que eu sei bem o que significa.
Comemos e dispensamos as embalagens, depois finalmente sentamos juntos em frente ao display. Fazemos isso há pelo menos dez anos, desde quando sua mãe morreu, incrivelmente ainda sem nenhum diagnóstico, mesmo com minhas apelações ao conselho sanitário. Nossa vida nunca mais foi como antes, mas ela não se tornou uma garota amarga, longe disso. Às vezes sinto que é ela a cuidar de mim e não o contrário, mas ela faz tudo sem estardalhaço, simplesmente impõe sua própria maneira de administrar a vida. Já andávamos cansados de assistir a programação regular e até estávamos tentando evitar a programação oferecida, mas a verdade é que vivemos numa época sem muita alternativa. Depois que Abel me ensinou a usar o display com sistemas alternativos e passou a nos emprestar filmes do século XX, tivemos bons momentos de diversão. Sofia encantou-se com os filmes antigos e ficou impressionada com as roupas e a beleza das atrizes. E quem sou eu para dizer que não são mesmo impressionantes?
Eu tinha tudo para tornar-me um dissidente também, mas Sofia é tanto meu impeditivo quanto minha justificativa. Apenas por isso, Abel aceitou que eu negasse sua oferta de fluir pelas subredes: eu nunca saberia se a cura viria mesmo ou se precisaria de uma vaga nos hospitais. Se fosse identificado como dissidente, meus direitos sociais seriam cassados imediatamente, restando-me apenas o direito ao voto. Depois da cura definitiva de Sofia, quem sabe? Até lá, viveremos como se nada acontecesse e não soubéssemos de nada, a verdade é que somos um tipo de sobreviventes custodiados por pílulas regulares, alimentação dosimetrada, diversão programada e políticos subvencionados pelas grandes transnacionais.
Custa a Sofia controlar-se para não tomar de minha mão o card de memória. Como sempre, fazemos ao usar o display fora do sistema, fechamos as janelas para evitar que vizinhos vejam o que estamos fazendo. A zeladora do edifício, dona Matilde, é especialmente enxerida e de tanto em tanto tempo ela atravessa os imensos corredores circulares observando os apartamentos e reportando anormalidades aos controladores. Já nas primeiras vezes eu mostrei a ela a caixa de comprimidos e a receita para o tratamento da fotofobia; depois disso, ela nunca mais perguntou nada, felizmente. “Há outras pessoas fazendo esse tratamento também. Isso é trabalho demais, você deveria tirar férias”, foi o que ela disse no último encontro que tivemos.
Ela está em sua poltrona esperando-me e, enquanto faço minha higiene, observo-a pelo espelho. Os olhos esverdeados parecem quase irreais. Sua avó sempre me disse que nossos antepassados eram portugueses e indígenas, de onde então aquela cor? Meus próprios olhos, menos claros que os seus, também parecem irreais. Acho que isso talvez seja fruto das intervenções genômicas, só pode ser isso. A cicatriz que tenho na têmpora esquerda desde a infância não deixa dúvida de que sou eu mesmo, o mesmo de sempre, o eletricista. Só não sei se minha mãe me reconheceria, pareço tão diferente de quando era criança. “Venha logo! Não temos muito tempo, logo o display vai reiniciar.”, ela pediu, mas aquilo na verdade era uma ordem. “Já vou…”
Com uma pequena chave de fenda, afasto a pequena tampa oculta e substituo o card. Ele liga imediatamente, mas sob outro sistema operacional e todos os aplicativos oficiais estão fechados, como num passe de mágica. Com um toque na tela, o sistema reconhece o conteúdo no slot e exibe dezenas de pequenas imagens. Bastará que um de nós diga “show” e a tela começará a rodar um a um os slides e, na camada oculta, os filmes embutidos. Antes que eu consiga sentar, ouço ela interpelando o display.
“Show!”
Ouço um suspiro profundo ao vermos que, por detrás de um dos slides, há uma cópia sem cortes de Janela Indiscreta. Abel realmente descobriu a fórmula de agradá-la e sem precisar dizer coisa alguma. As fotografias do museu são iguais a todas que estão lá, são cenas idílicas e artificiais de lugares que podem ser qualquer lugar, menos o Brasil como ele já foi, basta que se conheça um pouquinho sua zona rural, as periferias das áreas de mineração e o que vai um pouco afastado dos centros controlados. Na verdade, são apenas imagens modeladas nos mesmos padrões de sempre e que ainda enganam muitas pessoas. Melhor mesmo é assistir aos filmes e Sofia parece que já entendeu isso muito bem; é só confirmar o brilho em seus olhos. Às vezes, observando com mais cuidado, tenho a impressão de que nenhuma daquelas atrizes jamais fôra assim tão bela. E duvido que sua voz tenha sido menos imperativa que a da própria Princesa de Mônaco nos seus melhores dias, mesmo ao repetir o gesto de seu bisavô, ao mascar um talo de agrião selvagem que lhe escapa pelos cantos da boca e que, sem nenhum suco mais e cerimônia nenhuma, ela cospe no mesmo prato em que acabou de comer.
João B. Cabral nasceu em Cascavel – PR (1995) e mora atualmente em Porto Alegre – RS. É microbiologista e pesquisador na área de infestação industrial. Tem contos publicados sob pseudônimo em Strange Horizons, Lightspeed e outras.
