VILA CAROLINA – CAP. 3, por Lucio Carvalho

Há um silêncio dentro do canto dos pássaros que é como se eles cantassem dentro do próprio canto. Cada qual no seu horário, como numa atividade inversa, o que de melhor eles fazem, afinal, é revelar o silêncio a intervalos. A cada momento de quietude em que resta o ruído dos passos na areia e na terra dando conta de alguém trafegando, com exceção do quero-quero e dos silenciosos colibris, poucos prestam para denunciar a chegada de alguém. Há os coscuvilheiros bem-te-vis a fiscalizar também, mas são tantos alertas falsos que ninguém lhes dá atenção. Vivendo sem cachorros e quase invariavelmente sem um ajudante, o doutor se fia muito na boa audição e nos demais sentidos para atentar-se ao movimento.

Mesmo que raro e resolvido por sobre a mureta que dividia o lugar do mundo, ainda que afastada da cidade, a Vila às vezes recebe gente de passagem. Todavia, como ele me assegurou, é povo de antigas cortesias que bate palmas antes de atravessar o portão, respeita aqueles limites e grita ó de casa se vêm para entrega ou, que seja, imprevisto. Mas, nas aves, não se fia nunca e, por via das dúvidas, mantém a velha garrucha bem perto da porta. De outra estada ali, da época antiga, garantiu-me nunca tê-la usado ao mostrar-me o objeto. “Presente do meu sogro, veterano do Paraguai, delegado depois, coronel em 93…”, e explicou-me que a arma oferecia apenas uma chance, já que necessitava recarga, e que quem gostava de usá-la mesmo era o filho do meio. Com ela, o jovem já havia dado jeito em mão-pelada e urutu-cruzeiro criada, dessas que se escondem nos arrebóis e saem à tardinha a ceifar vidas voluntária e involuntariamente. Boa mira de que ele gabava-se e apreciava exibir. Ele mesmo afirma tê-la empunhado uma vez só contra pessoa, e foi quando em torno de 23, ou 28, seja como for antes de 30, quando a cidade abrigou tropas desencontradas da coluna de Honório Lemes, e ele próprio esteve ali, e um desgarrado que outro do seu comando tentava alguma coisa contra as propriedades e mulheres, sem cortesia nos avanços. “Ele entendeu que eu não estava de brincadeira e iria lhe estourar as tripas…”, contou-me e eu pensei comigo mesmo se a arma não andaria precisando de alguma lubrificação. Parecia encardida, peça de museu e, como me pareceu melhor assim, deixei o assunto morrer.

Este filho, ou qualquer dos seus filhos, eu pouco encontrei nessas viagens. Andavam sempre para fora, na estância da família, cuidando das sucessões da mãe, de família de posses, e, na cidade, às vezes ficavam na casa de parentes, no centro, porque o doutor apagava as luzes religiosamente às dez da noite. Para a juventude, cedo demais. Apesar de exígua, a cidade tinha clube, bilhares e um incipiente movimento juvenil que se agitava mesmo é nos meses de verão, em torno do Carnaval. Mas esse, o da boa mira, esse tinha certa desconfiança da minha amizade com o pai. Mas ele, eu nunca soube de que forma, tranquilizou-o de que eu era inofensivo; um amigo que ganhou já velho, quando cada vez mais se afastava do convívio urbano e, por outro lado, gostava de conversar a respeito dos livros que trazia e vendia e também de saber das viagens que fazia por onde eu ia, da capital até o interior do Uruguai, onde cada vez menos eu andava. A fronteira que já havia me causado poucas e boas, empenhos na estrada e noites a céu aberto, era cada vez mais deserta e a tudo eu cada vez mais dava jeito de resolver nas cidades, sempre que fosse possível. Os dias não eram mais os de antigamente quando até os ladrões tinham compostura, agora se andava por tudo a atirar antes de perguntar. Comigo não seria diferente e, com quem me afrontasse, também não…

Já os outros seus filhos, o mais velho e o mais moço, só de passagem, no caminho, quando acenávamos atrás dos para-brisas, mas estes eram mais indiferentes às minhas visitas esporádicas. De qualquer forma, para não despertar qualquer estranheza, recusei sempre as ofertas para que pousasse na casa. Preferia tomar do carro ainda que fosse à noite e aproveitar o movimento possível da pequena cidade. É inacreditável o que se pode descobrir para fazer no interior de fachadas acanhadas e até singelas que há por aí afora. Jogos de cartas e tavas para o jogo do osso, de piso duro e solado, rinhas e diversões mais pecaminosas, até.

A Vila agora era mais silenciosa ainda. Viúvo e vivendo ainda mais isolado, era inacreditável que conservasse o sítio naquele nível de cuidado praticamente sozinho. Disse-me que um vizinho às vezes vinha ajudá-lo a capinar as hortas, mas, como já havia substituído os equipamentos antigos por novos, elétricos, precisava de pouca ajuda. O rádio sintonizado na Guaíba, de Porto Alegre, mantinha-o com os ouvidos e a atenção ocupadas e cansar o físico, como ele dizia sempre, garantia o sono dos justos.

“Essa é filha da mãe d’água, deixa ela passar!”, instruiu-me para que não fizesse caso da jararaca cruzando o pequeno degrau que separava o pátio interno da calçada sob o alpendre da casa. A cobra passava quase sob o meu pé direito quando pressenti seu súbito encarquilhamento e até a língua bifurcada apareceu no contraste do tapete duro, cinza, de tirar o pó dos calçados, que ele tinha bem diante à porta de entrada. No mesmo lugar, uma pileta e um lavabo antigo, com o odor acre de relativos primores, convidava aos visitantes que se asseassem antes de dar as caras no interior da casa. Às vezes, não era necessário, como naquela tarde em que ele em pessoa vinha receber-me, pois, provavelmente, de cedo que aportara ali, havia interrompido sua sesta e ele escutado o rumor do Corcel estacionado na lomba de entrada, antes do portão da sua garagem. Então o homem ainda preservava jararacas, pensei, deve ainda ser tão maniático quanto há tempos atrás.

“Minha nossa senhora!”, exclamei-me pensando em que tamanho teria a tal mãe d’água se aquela fosse a sua filha. “Imagino a avó dessa tipa!”, comentei e ele riu-se, e explicou em poucas palavras que a seca ameaçava sua fonte e, de acordo com ele, uma família de jararacas é quem melhor poderia cuidar da nascente vivendo num monturo de pedras e tijolos bem ao lado do seu melhor olho d’água, que era de onde o catavento, bem diante do sobrado, puxava água antes. Agora, havia um motor e o gigante de pás e sua torre metálica parecia uma escultura imensa ladeada por araucárias. “De tudo elas cuidam. E dali a água não seca. Nunca secou.”, complementou enquanto aguardava que secasse as mãos na minha própria roupa, já que não havia toalha à vista. Mas ele não fez caso dos meus modos, um homem solitário e velho já não dedicava tantos cuidados ao lugar de viver. Mais que a falta de toalha e o sabão endurecido, a convivência quase familiar com as cobras assim demonstrava.

“Está mudado aqui? O que o senhor andou alterando desde a última vez…”, indaguei-lhe já dentro da saleta apinhada de móveis pela qual passamos até chegar à cozinha da casa. Alcançando-me um copo de água, respondeu-me com outra pergunta: “Mas quando foi isso mesmo? O maluco da vassoura já tinha renunciado?” Ele referia-se a Jânio Quadros e eu fiz contas mentalmente de até quando havia durado o meu termo de serviço com a editora Globo. “Acho que pouco antes disso. A confusão veio mais tarde, quer dizer, o seu conterrâneo gauchão aqui, o doutor Jango”, disse-lhe sabendo que não se considerava de todo um gaúcho. Era um pelotense e, sobretudo, médico formado no Rio de Janeiro, lá enviado pela mãe, quando mesmo? No começo do século… Esse, afinal, é o tempo de vida a que ele se refere, a um intervalo que abarca guerras e revoluções nunca imaginadas. Com a expressão de contrariedade de quem se sabia sutilmente espezinhado, encerrou o assunto: “Ah… Não me venha com esse tema outra vez!”

“Tema” é um modo de falar que, ouvido por gente destreinada do convívio dos antigos, nem entende do que se trata. Não é o meu caso, pois são meus fregueses preferenciais, embora o aparelho de televisão, ao centro da sala, bem defronte a sua poltrona de descanso, indique-me que mesmo o doutor tem aderido ao novo costume. Pensando nisso, mudo o assunto. Falamos da televisão e do que ele consegue assistir. “A imagem é péssima, mas consigo acompanhar a repetidora de Santa Maria. Mas ligo apenas no telejornal. Para o resto, o rádio continua sendo melhor.”, disse-me e apontou com os olhos para o aparelho preto, um Philco Transglobe postado sobre um balcão posicionado estrategicamente entre a cozinha e a sala da casa. “Então o caro doutor ainda deve ser o leitor voraz de antigamente…”, sugeri. Ele riu-se e disse que tinha no gabinete quase tudo que precisava conhecer e saber, porém, claro, me ajudaria na retomada do ofício. Até que eu tentei evitar o suspiro satisfeito, mas tinha liberdade com o velho homem e respirei profundamente. Sob os óculos pesados, de lentes grossas, ele sorriu o mesmo sorriso de olhos, insinuado à face, como o de tempos antigos.

Vivendo só, à sombra de um monumento desocupado, o sobrado, e árvores adultas, muitas árvores, o doutor exibia ainda uma higidez invejável. Viúvo há poucos anos, dois talvez, mantinha ainda a mesma vida que havia levado junto à esposa Carolina. Até mesmo as duas poltronas pareadas continuavam no mesmo lugar. À sala de estar, um conforto expresso, de móveis antigos, reunia peças que nunca haviam sido assentadas no sobrado, embora tivessem sido adquiridas para decorá-lo. Uma namoradeira estofada de alto espaldar, a mesa expansível, quadrada, onde acomodava visitas para refeições e partidas de víspora, o balcão com o rádio que servia também de depósito de secos e um fogão a lenha desativado em prol de um mais novo, a gás, instalado na cozinha supervisionado pelo relógio de armário e pêndulo. Todavia não era ali que o doutor guardava seus livros e tinha sua escrivaninha de leitura. Ao contrário dos móveis do consultório que havia mantido no térreo da nova casa, junto ao que deveria ser a enfermaria da Vila, o gabinete do doutor era mantido dentro do sobrado hermeticamente lacrado. Para lá nos dirigiríamos após o descanso do almoço. Até lá, eu faria companhia ao homem ao tempo de refazer a imagem mental do lugar. Ele aproveitaria para que eu o colocasse em dia como testemunha do que ele se informava pelo rádio e Correio do Povo; eu, para que ele saciasse a minha curiosidade, pois, passado todo esse tempo, sentia que sabia cada vez menos a respeito do que havia lhe passado na vida, afinal.

Lucio Carvalho é editor da Sepé.

FICÇÃO

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