APRESENTAÇÃO

Em guarani e em outros dialetos indígenas, sepé é nome empregado comumente a homens. O termo denomina também uma gramínea bastante comum no Rio Grande do Sul: o capim Santa-Fé e parece ter esse sentido original. Outro significado possível para o termo é o de “chefe” e essa designação pode ter relação com o nome de batismo de Sepé, José Tiaraju, alferes real e corregedor do Povo de São Miguel e Província Jesuítica do Paraguai.

Tendo vivido no séc. XVIII nas reduções jesuíticas e conhecido entre os indígenas apenas por “Sepé”, José Tiaraju foi morto em fevereiro de 1756, em sítio localizado hoje no município de São Gabriel, interior do Rio Grande do Sul. Personagem central da Guerra Guaranítica ao lado de Nicolau Nhenguiru, Sepé liderou os indígenas guaranis contra a desocupação decorrente da celebração do Tratado de Madri entre as coroas portuguesa e espanhola até a sua morte.

A primeira referência literária a Sepé aparece relatada no épico O Uraguai, de Basílio de Gama, escrito e publicado em 1769. No poema arcadiano, o chefe Sepé, ao lado de outros caciques revoltos, aparece altivo na defesa dos povos das reduções: “Quis três vezes levantar-se do chão: caiu três vezes, e os olhos já nadando em fria morte lhe cobriu sombra escura e férreo sono. Morto o grande Sepé, já não resistem as tímidas esquadras.”

João Simões Lopes Neto, nas Lendas do Sul, de 1913, vai recuperar da tradição oral a história de Sepé, já transformada em mito e, a essa altura, santo popular (dessa crença deriva, por exemplo, o nome do município de São Sepé). De acordo com a lenda ditada em versos a Simões, Sepé nascera com uma cicatriz ao centro da testa que reluzia magicamente pela noite e que indiretamente teria favorecido a que o encontrassem e matassem. À época de Simões, a lenda de Sepé já lhe conferia o status de santidade: “Eram armas de Castela, / Que vinham do mar de além; / De Portugal também vinham: / Dizendo, por nosso bem… / Sepé Tiaraju ficou santo / Amém! Amém! Amém!”

Já no séc. XX, em O Continente, primeira parte de O Tempo e o Vento, Érico Veríssimo fez com que o seminal personagem Pedro Missioneiro, responsável com Ana Terra por metade do tronco Terra Cambará, previsse quando criança, ainda na redução, a morte do alferes real: “O capitão Sepé não volta mais” e, mais tarde, a confirmasse: “A alma de Sepé subiu ao céu e virou estrela.”

Outros livros e referências mais foram realizadas em sua homenagem ou em sua discussão, como Tiaraju, de Manoelito de Ornellas e Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, romance de Alcy Cheuiche. Na década de 50 do séc. XX, no bicentenário da Guerra Guaranítica, integrantes do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul protagonizaram uma discussão intensa a partir de uma consulta do então governador Ildo Meneghetti a respeito de homenagem que se desejava fazer ao chefe indígena. Debate inconcluso e inesgotável que buscava reconhecer ou rechaçar a contribuição das etnias indígenas na formação política e cultural do estado e sua simbologia, na literatura a figura de Sepé é um antecedente inextirpável e indicador do potencial imaginário popular relacionado à experiência missioneira.

Nesta publicação, o nome de Sepé é evocado por seu duplo significado. Seja como a gramínea santa-fé, resistente e capaz de refazer a cobertura do solo prejudicado, quanto pelo nome através do qual José Tiaraju ficou popularmente conhecido, Sepé é ao mesmo tempo antecedente histórico e patrimônio cultural imaterial dos povos originários. O seu lunar, aqui fixado, tanto pode ser tomado como obra do acaso ou então interpretado literariamente como lembrança da sua origem numinosa, tendo-se em mente que, assim como as lendas, a lua não é propriedade de ninguém e, ao mesmo tempo, patrimônio de todas as pessoas.

Por Lucio Carvalho, em 12/01/2020.

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