De ‘DOMANDA NÍSIO’, de Emir Rossoni
“Sei arrivata, sei arrivata”, consegui sorrir quando tu chegou.
As pessoas comentam quando sorrimos num velório. Mas o que elas mais fazem é tentar nos fazer sorrir de maneiras tão estúpidas que sentimos vontade de colocá-las no lugar do defunto. Eu sorri porque te vi. Porque tu tinha chegado. Porque eu queria que tu estivesse aqui há muito mais tempo. Sorri porque não me senti sozinha mais. E porque eu não havia conseguido chorar ainda. Apesar do Fioravante ter sido meu marido por quarenta anos. A gente se acostuma com alguém que dorme por quarenta anos ao nosso lado. E é por isso que se deveria chorar nessa hora.
Então, depois de sorrir por te ver, chorei por te ver.
As pessoas comentam quando choramos num velório.
Tu deve estar mais cansada que eu.
“Vuoi verderlo? Vuoi?”
Tu entrou. Olhou. Chorou. Deve estar cansada. Mais cansada que eu e os outros que passamos a noite na capela. Deve ter apanhado um ônibus, dois, três ônibus. Não deve haver ônibus direto de Toledo até aqui.
“Ho preso um taxi”.
Um taxi de Toledo até aqui?, pensei.
“Ma cara, quanti soldi hai spento”.
Mas isso não importa nessas horas, correto, eu entendo. Ele era teu irmão. Às vezes me esquecia disso. Teu irmão. Quem diria que eu passaria tanto tempo com ele. Quem diria. Quarenta anos. Quase bodas de ouro. E tu sem vê-lo. Como será passar quarenta anos sem ver o irmão?
Nunca perguntei isso ao Fioravante. Por ele saber do ocorrido, eu sentia medo. Então, esperava alguma iniciativa vinda dele. Em vão. Porém, há oito ou dez anos, os filhos Jose Soccol, lembra? Moram em Toledo também, passaram lá em casa pra pescar. O Fioravante foi junto, mas antes ficaram meia hora conversando. Acho que foi para ganhar autorização que disseram te conhecer. Foi a única vez que vi teu irmão marejar os olhos.
“Ha detto che Antonia sta bene”.
Ele nunca te chamava por Maria. Maria Antonia, nem pensar. Era Antonia teu único nome. Talvez uma forma de te simplificar. De não te entender por inteiro. Era a única pessoa no mundo a te chamar pelo segundo nome. Mas ficou feliz ao ouvir notícias, mesmo que não fossem notícias. Nas semanas seguintes, andou perguntando para os mais sabidos como se fazia para chegar ao Paraná. Num sábado à tarde, antes do carteado, me deixou esperançosa.
“Un giorno e mezzo”, disse. “De strada.”
Era tudo que havia descoberto sobre a viagem até ti.
Percebi que a melhor forma de tratar a ausência é viver a presença. Por isso, é sincero quando digo que amei teu irmão. Tu partiu num mês de dezembro. No dia seguinte, encontrei um pé de amoras brancas. Em dezembro as amoras brancas estão com folhas grandes e verdes. Depois caem para os frutos ganharem espaço. Mas dezembro é o melhor mês para se ver suas folhas. A despensa ganhou um cheiro característico que se transformou no símbolo de tua partida. Colhi diversos ramos, que deixava secar, pendurados naquele prego do canto, lembra? Sempre acabava com algum espinho fincado na mão. Mas os espinhos faziam parte do ritual. Quando era hora de apertar, eles saíam junto com a pus. Era sinal de que as folhas estavam secas e prontas para guardar. Fioravante tomava chá comigo antes de dormirmos. Embora não soubesse o significado daquelas folhas, ele compartilhava.
“Massa”, disse três semanas depois de pensar em te visitar. “Massa tempo”.
A estrada o assustava. E todas essas horas dentro de um ônibus o fizeram deixar essa tonteria pra outra ocasião. Fioravante sempre adiava as ações mediante um motivo maior.
“Dobbiamo vender le vache”.
O dinheiro ganho com a venda de algumas vacas seria a solução para te visitar. Era preciso esperar.
Por isso pensei que com o tempo tudo melhoraria. Principalmente porque o leite estava dando um bom dinheiro e aos domingos eu ia à igreja e estava me acostumando às conversas das mulheres sobre filhos, receitas de doces e formas de afastar os maridos durante a noite. Não aderi a nenhuma dessas fórmulas, mas voltei a estudar num mês de março. Fazia um ano e quatro meses de tua partida.
Passava um ônibus na porta de casa. Era uma turma só de gente com mais de vinte. Até tinha uma mulher de quarenta e sete. Aulas de segunda a quinta. Depois, eu chegava sem fazer barulho para não acordá-lo. Acho que dava certo. Mas nas sextas ele sempre queria. Então, eu deixava, já sabendo que no sábado e no domingo chegaria tarde e bêbado e não pensaria nessas coisas.
Nunca mais parei de estudar. Gostava de geografia e literatura. Mas foi as aulas de história que comecei a aplicar na minha vida. A arte da guerra era o nome do livro. Eu retirava na biblioteca. Ficava com ele durante uma semana, anotava o que interessava e depois o devolvia. Uma semana mais e o retirava novamente. Desse momento em diante, jamais sugeri coisas a Fioravante, mais o instigava para que ele tivesse brilhantes ideias. Funcionou conforme dizia no livro. Tu sabe como são os homens.
Numa segunda-feira, contei o que havia escutado das mulheres após o terço.
“Jose Soccol è malato”.
Era um dos seus melhores amigos de infância. Ele quis saber o que tinha, quando começara a doença, quem havia dado a notícia.
“Ho ascoltato ieri!”
Fiz-me desentendida. Foi na roda das mulheres. Alguém disse e mudou de assunto.
“È bisogno catarlo?”
Perguntou-me de forma retórica. Eu havia já ensaiado o balançar dos ombros como resposta. Como se aquele gesto fosse uma passagem para Toledo e para perto de ti.
Eu nunca soube compreender se as desistências dele em te visitar se creditavam ao ocorrido ou se adiar os planos fizesse parte de sua personalidade. Hoje posso perceber que adiar um plano é uma desistência disfarçada. Saber observar teu irmão também foi uma lição de vida. Eu lia na biblioteca da escola uma autora chamada Virgínia. Ela contava histórias que não dava para entender direito. Mas era possível sentir muita coisa. Eu via o Fioravante sempre que lia aquele livro. Era bom. E era ruim. Assim como a esperança de embarcar num ônibus e sair daqui que acendia-se num final de tarde e morria num amanhecer próximo.
“Altra ora”, disse Fioravante ao desistir de visitar o Jose Soccol dois dias depois. “Altra ora andiamo”.
Como se outra hora fosse a hora ideal. Como se eles estariam eternamente saudáveis para se encontrarem e fazer tudo que tivessem vontade.
Eu baixava os olhos.
Muitos são os caminhos que levam ao mesmo destino. No meu caso, o destino era a espera.
Não nasci sabendo esperar. Mas então, depois que passei aquele final de semana nessa casa que era dos teus pais, entendi que minha vida giraria em torno desses montes. Havia dormido no teu quarto. E o Fioravante ofereceu bergamotas ainda com orvalho pela manhã. Vi nele os seus olhos. Não esperaria menos do teu irmão. Ele foi gentil. Mas falava pouco. Reconstituindo aquela manhã de domingo, quando tomamos café e depois colhemos rosas para enfeitar a mesa durante a tarde, é fácil perceber que o que mais buscávamos era segurança. Ainda mais após o ocorrido na cachoeira. Pergunto-me sempre se sua mãe comentou com alguém. De qualquer forma, Fioravante foi o melhor que me aconteceu naquele momento. Um homem e uma mulher à deriva. Sua mãe doente e a casa precisando de uma ajuda feminina. Ele perguntou se eu queria e eu disse “Si”, como se ainda estivesse à deriva. Dois meses depois eu morava aqui. Mais dois meses e tu embarcava para o Paraná, que ninguém fazia ideia onde era.
Ficar embaixo do teu irmão me martelava o útero e o estômago. No início, ele era rápido. Mas depois passou a demorar mais e o peso ficava maior. Queria de noite, às vezes de tarde, quando estávamos sozinhos. Então eu esperava ele terminar. Eu tinha certeza que, num final de semana próximo, estaria contigo de novo na cachoeira. Convinha que fôssemos mais vezes. Mas tua mãe aparecia sempre que a água que jogávamos para o alto começava a formar pequenos arco-íris.
Então tu partiu. Sem dizer nada. E ninguém mais falou sobre isso.
Era para tu ter voltado no enterro da tua mãe. Era pro Fioravante ter te mandado avisar da morte de teu pai. Era para ele ter te visitado na tua operação. Era para tu ter passado um tempo aqui depois de ter ficado viúva. A verdade é que ninguém soube mais nada. Não tivemos filhos. Nunca conhecemos teu marido. Nunca soubemos do que vivias.
“Cara, carina”, tu fala. “Non c’é marido.”
Como assim não há marido? Tu não casou? Como essa história chegou até aqui? Tento perguntar, mas apenas sinto frio. Gela primeiro o couro cabeludo e depois petrifica o rosto, as expressões e desce até manter imóveis os braços, as mãos e os dedos. E é como se também congelasse uma vida de dúvidas e projeções falsas criadas a teu respeito.
“Como?”, consigo falar. “Che hai fatto?”
Penso então em te abraçar, talvez em querer saber como tu viveu esses quarenta anos.
Mas tu nada responde.
Porque o motivo da tua vinda não foi esclarecer teu passado. O motivo está no caixão, lá dentro da capela. Tu não viu teu irmão envelhecer. E agora o vê tão gelado quanto o passado que parece despencar no solo duro e estraçalhar-se em centenas de pedaços que jamais saberemos reconstruir.
Mas isso é tão desnecessário quanto relembrar a forma como vivemos esse tempo.
Esperei. Ho aspetato. Aspetato quaranta anni. E agora tu retorna. E é pro enterro do teu irmão. Não sobrou mais nada. Não sobrou tua mãe. Não sobrou teu pai. Não sobrou o Fioravante. Nem a casa do jeito que era sobrou. Tu acha que eu sobrei?
“Vardemi”.
Não vai ver nada em mim.
“La vita è andata”.
Foi-se.
Melhor assim. Eu estava cansada.
Tu tava longe. E o Fioravante andava com dores.
“Tè”, eu disse. “Amora bianca”.
Ele tomava chá. Assim como achava que sempre podia te visitar no mês que vem, no final do ano, no ano que vem, deixava para ir ao médico depois.
“Se no passa”, dizia ele. “ndó doman”.
Mesmo assim ele não ia no dia seguinte, nem no outro. Teu irmão deixava pra depois. E eu esperava. Fazia chás.
Apesar de estar certa que chá de amora branca nada interferia em suas dores de barriga, eu fazia. Ele tomava, dizia que tinha impressão de estar melhor. Mas na verdade ele estava piorando. Mal comia.
Quando cansei de esperar que ele fosse ao médico, de esperar que ele comprasse passagens para te visitar, de esperar que ele saísse daquela cama, fiz o último chá.
“Perdonami”.
Pero creio que foi o melhor para todos.
“Sei arrivata, sei arrivata”.
E não há Fioravante agora. Noi, Noi. Mas também não há mais cachoeira. Trancaram o rio por causa da represa. Tudo ficou inundado. Nem mesmo as pedras sabem agora do ocorrido. Nem mesmo as pedras.
“Sei arrivata.”
Emir Rossoni é autor de “Caixa de Guardar Vontades” (vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura e do Prêmio Guarulhos de Literatura de Livro do Ano em 2019), “Domanda Nísio” (vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2018 e do Prêmio Bunkyo em 2020), e “Erros, Errantes e Afins” (Prêmio CEPE de Literatura 2020). Ministra desde 2016 a oficina literária “As duas histórias do conto” e o curso “Escrevendo sem Inspiração”.
