3 poemas de Blenda Santos

Crio tecnologias com a boca

uma mulher carregando no ventre um caixão de uma tonelada levantou voo nesta madrugada
um menino correndo na rua atrás de uma bola também desafiou as leis da física
ela que não aprendeu a ler, me ensinou a escrever poesia
e se eu esquecer, eu nem sei mais o que fazer
eles não queriam que eu viesse, mãe
e eu sou poeta
crio tecnologias com a boca, pois preciso lembrar de cada animal em extinção nesse país, em que todo mundo sonha em ter um pai
nós não somos iguais e graças a deus
um movimento contínuo para queimada de sutiãs nunca me disse tantas coisas assim
desde então, eu era mordaça com folhas de flandres
de onde eu vim, águas passadas movem moinhos
não esqueço das que vieram e abriram caminhos
ketu, nagô, gege, bantu
não quero sua cor, sua cultura, sua lida
não quero seu espaço, sua crença, sua língua
nós não somos iguais e graças a deus
os reconheço pelo cheiro de quem desde o primeiro banho, nunca mais parou de feder
quem tem punho cerrado que erga
eu escrevo para todas aquelas que virão depois de mim

Antecedentes

não me convence de coisa alguma
quem diz que um corpo precisa passar por entre facas
para assim aprender sobre algo
não existe esse que saia ileso de campos de concentração
guerras não foram feitas para ensinar nada
sangues não podem ser tintas sobre telas
balas mesmo que de borracha deixam cicatrizes
o que antecede é a única fórmula mutável
mas ninguém está interessado nas lágrimas

Isidório

Isidório tem dentes grandes e olhos do mesmo tamanho
aprendeu a sorrir com os dois porque não gosta de perder tempo
é menino e homem para não cometer desperdícios
faz questão de manter o seu avô vivo e por isso, todas as vezes não mente

Isidório dorme de olhos abertos para não roubarem seus sonhos
raciocínio rápido e lógico, filosofia e matemática
daqueles que reprovam em cada matéria e ainda assim conseguem levantar uma casa com as próprias mãos

Isidório lê livros sem se atentar ao nome do autor e sua origem
se contenta com fios de roupas amarrados em seu copo para assim guardar lembranças
entrega coisas e mesmo que não te devolvam, ele repete o ato
pois antes de entender, tem preferência pelo sentido

Isidório escreve sempre com letras bonitas e enfileiradas, sem caderno de caligrafias ou réguas
se na mercearia falta uma moeda, logo volta para nada mais faltar
não repete as mesmas palavras, para ele só uma vez basta

Isidório sempre esquece de tirar o ferro que liga a articulação de um dos seus ombros
por isso só se deita de um lado da cama
velocidade e precaução, tudo ao mesmo tempo
50 por cento de uma coisa e 50 por cento de outra
o equilíbrio entre os motivos pelo qual acumula diversas histórias marcadas no corpo

Isidório ama como quem se ama o reino dos bichos e dos animais
não lembro da última vez em que ele falou o meu nome
tem preferência por me chamar de um jeito que só ele pode
odeia que roubem suas ideias, mesmo as mais óbvias como a cor de nossa pele

Blenda Santos é poeta, produtora cultural e foi a primeira representante de Sergipe no Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe, iniciou o seu trabalho com a literatura em 2016 e desde então, circula por diversos espaços, utilizando a união da poesia falada e da formance corporal como ferramenta de reconstrução das narrativas do povo preto e periférico. Produz o CPP – Circuito de Poesia Preta, faz parte do Coletivo Entre Becos, é slammaster do Slam Entre Guettos e do Slam Sergipe – Campeonato Estadual de Poesia Falada.

POESIA

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