PÓS-FLAGRANTE – CONTO INÉDITO DE TAILOR DINIZ
A cidade estava quase submersa. De algumas casas, nos locais mais baixos, só se podia ver os telhados e parte das paredes. E nos campos, para qualquer lugar onde se olhasse, não se via mais que extensos lençóis d’água estendidos de ponta a ponta. Chovia sem parar havia quase um mês, e aquela já era considerada a maior enchente dos últimos cinquenta anos. Nas coxilhas concentravam-se os animais fugidos do alagamento, taciturnos e ruminantes. Agora que a chuva cessara desde o meio dia, nuvens escuras e pequenos vãos azulados refletiam-se na lâmina da água, dando impressão de que, às margens da estrada, um imenso espelho descansava sob a calmaria traiçoeira da tarde.
Era inverno, e o frio entrava direto no lado do carona porque o vidro da velha Variant não se firmava por muito tempo. O homem agarrava-se ao volante, o olhar fincado na estrada de barro, como se nada mais houvesse no mundo capaz de lhe desviar a atenção. Ao lado dele vinha uma mulher de feição abatida, os olhos inchados, algumas rugas se acentuando na face avermelhada. Às vezes, ela erguia o braço para ajeitar a gola do casaco, ou reerguer o vidro que baixava com a trepidação. Eram os únicos movimentos aos quais ela se permitia naquela viagem de silêncios e solavancos, em meio à repetida solidão encharcada do campo.
Ele também seguia teso, os movimentos ao volante limitavam-se apenas ao necessário, ao giro da direção para os lados e às trocas de marcha que não eram poucas devido às péssimas condições do terreno. O carro deu uma guinada para a esquerda, uma derrapada forte, mas logo se endireitou. Passado o susto, seguiu adiante na sua luta contra a estrada tortuosa, que provocava contínuos baques, alguns quase levando os dois passageiros a quase baterem as cabeças no teto.
— Ainda bem que parou de chover — ele disse, como se conversasse consigo mesmo, sem tirar o olhar da estrada.
Ela mexeu a cabeça um pouco para o lado, o corpo duro, tenso, mas não em resposta às palavras dele. Mexeu-se por causa das guinadas do carro, que gemia campo afora, deixando a impressão de que poderia se desmanchar logo em seguida, já na próxima curva. Ele nada mais disse por um longo trecho. As nuvens se abriam aos poucos, pequenos vãos de céu podiam ser vistos adiante, indício de que o tempo poderia melhorar nas próximas horas e amanhecer firme no dia seguinte.
Quem os olhasse de fora, sem conhecer o pensamento de um e de outro, poderia imaginá-los dois seres estranhos, duas estátuas de pedra postas ali por uma circunstância qualquer, alheia aos seus respectivos passados, longínquos ou recentes.
Ele voltou a falar, agora virando o rosto na direção dela:
— Mais meio dia de chuva e o Jacuí não ia dar passagem.
A mulher reagiu como se a conversa não fosse com ela. E, como reação ao premeditado distanciamento dela, ele ergueu o queixo e puxou ar para os pulmões, depois soltou-o com vagar, os olhos sempre fixos na estrada tortuosa. O homem suspirava, e esse gesto confirmava que ali não estavam dois seres estranhos, como poderia alguém em princípio imaginar. Havia de um o esforço para ser indiferente. De outro, uma luta bravia para quebrar essa efígie de indiferença que, na verdade, emulava mais desprezo e desdém do que propriamente falta de atenção. Assim, o repentino suspiro dele era algo par ir além da orgânica necessidade de abastecer o sangue de uma dose maior de oxigênio. O suspiro sugeria que ali, dentro daquele carro velho e gelado, prestes a ser ferido em sua dignidade a cada obstáculo vindo em sentido contrário, alguém trazia consigo um tipo de urgência bem maior e vital.
“Embora as hienas também suspirem”, talvez dissesse a mulher, se sua postura deliberada não fosse a aspereza do silêncio intransponível.
Enquanto isso, parecendo um animal machucado e lento, a velha Variant ganhava terreno, aproximava-se do rio rugindo terra abaixo, a vomitar temíveis jorros de água e espuma para a frente e para as margens.
— Eu sou um canalha! — ele proclamou, seguindo-se outro suspiro.
Ela não disse sim nem não. Nenhum movimento se viu do corpo ou dos músculos da sua face rosada ainda sob os efeitos do frio vindo da janela mal fechada. Ele virou-se para ela, depois voltou a mirar em frente, onde se desenhava, a poucos metros, a ponte de cimento quase tocando o nível do rio inquieto e transbordante.
— Eu não presto — insistiu ele. — Eu não mereço a comida que como.
A mulher olhava sempre na mesma direção. E é bem provável que, tomada pela raiva, nem prestasse atenção à paisagem, ao rio furioso correndo embaixo, à ponte onde o carro acabava de subir, muito menos às palavras dele, embora pronunciadas bem próximas de seu ouvido.
— O que eu fiz não tem perdão. Sou pior que um cachorro sarnento.
E ela sem esboçar qualquer reação, como se nada de extraordinário, ali ou a léguas de distância, fosse capaz de lhe alterar a fria dureza da alma.
— Se ao menos tu concordasse, reagisse. Se me acusasse de alguma coisa, me agredisse, dissesse que sou mesmo um canalha, um crápula… Eu aceitava.
Percebendo a inutilidade das palavras, abalado na sua honra, o homem parou o carro, puxou o freio de mão e desligou o motor. Após retirar a chave da ignição, abriu a porta e colocou o pé esquerdo para fora, sobre o cimento da ponte. Olhou em volta como se procurasse alguma coisa. E a mulher no mesmo lugar, quieta. Nem mesmo no momento em que ele abriu a porta e uma rajada de vento gelado penetrou no carro ela demonstrou alguma contrariedade. Apenas puxou a gola do casaco para cima e se ajeitou no banco.
Irritado, ele desceu e caminhou até a margem do rio. Apanhou uma pedra, uma pedra grande, retangular, que ele, um homem alto e forte, teve dificuldade para carregar até o meio da ponte. Abriu o porta-malas, retirou uma corda de náilon azul-turquesa e amarrou na pedra. Não fosse o rugido forte da água passando embaixo, seria possível ouvir o som descadenciado de suas botas batendo sobre o escuro do cimento embarrado. Depois voltou ao carro, retomou seu lugar ao volante e se dirigiu à mulher, agora a encarando de forma direta.
— Não vou ter coragem de olhar a cara das crianças quando chegar em casa.
Mas ela não se mexia. E nada dizia também.
— Não vou aguentar a vergonha.
Apenas o rugido do rio se interpunha entre uma frase e outra dele.
— Elas não merecem o pai que têm.
A mulher virou o rosto em sentido contrário e acompanhou, através do vidro, o voo rasante de um pássaro em busca de comida, próximo à superfície da água barrenta.
— Um canalha como eu não merece continuar vivendo.
Ela não mudava a direção do rosto, voltado para o pássaro.
— Diga às crianças que o pai ama elas de todo o coração. Que não queiram mal o pai… — Faz uma pausa. — Não vou ter coragem de olhar dentro dos olhinhos delas quando chegar em casa.
O pássaro, agora mais próximo do carro, continuava o seu voo solitário em busca de comida.
— Diga a elas que eu era um canalha, eu era um pulha. É isso mesmo o que eu era — continuou ele, os verbos todos no passado, enquanto descia do carro —, eu era um pulha. Eu não te mereço, meu amor! — E os olhos dele se encheram de lágrimas.
Desceu do carro e caminhou apressado para o meio da ponte, onde estavam a pedra e a corda de náilon azul. Apoiou as duas mãos na murada e olhou para baixo, para a água turva que corria, veloz e pesada, como se estivesse fugindo de um grande e terrível monstro. Com dificuldade, ele conseguiu empurrar a pedra para a beira da ponte, sob a murada de cimento, e começou a amarrar a outra ponta da corda na perna direita. Súbito, interrompeu o trabalho e retornou ao carro. Desprendeu o relógio de bolso da cintura, um relógio de prata com fundo de porcelana e números romanos, e estendeu o braço para a mulher.
— Entregue para o Dionatan, de recordação. Ele sempre gostou de brincar com o relógio. E isto… — meteu a mão no pescoço, por dentro da camisa de pelúcia, e retirou uma correntinha de ouro com a medalha de Nossa Senhora. — E isto é para Daiane.
Como a mulher não se mexia, ele largou os dois objetos sobre o banco e saiu. Quando estava quase chegando à pedra, deu meia volta, metendo a mão no bolso. Bateu a porta da Variant por fora, e enfiou a cabeça na janela. Estendeu o braço e colocou a chave na ignição.
— É só pisar na embreagem e virar para direita que o motor pega.
Dito isso, caminhou outra vez para onde estava a pedra. O rio continuava bravo, espumando e salpicado de galhos e troncos de árvores que desciam, velozes, leito abaixo, como atraídos pela boca feroz de um imenso redemoinho. Depois ele amarrou bem a corda no cano da bota e tirou a japona. Sentou-se na murada, de costas para o rio, ergueu uma perna, depois a outra, agora de frente para a água. A pedra era pesada, grande, uma pedra retangular, pedra-ferro, de basalto, e ele, sem ponto de apoio, tinha dificuldade para empurrá-la ponte abaixo. Mas conseguia movimentá-la, aos poucos, e quando estava quase na metade, quando a pedra começava a pender na direção da água, olhou mais uma vez para o carro. Nenhum movimento, nada parecia acontecer lá dentro. A mulher mantinha-se na mesma postura, o rosto para frente, num mutismo mais aterrador que as nuvens de chuva pesando no céu sobre os ombros do mundo. Com a mão direita, ele, então, segurou a pedra quase caindo, com a outra alisou o cano da bota, depois apalpou a corda como se quisesse conversar com ela, algumas formigas de asas saíam das tocas e começavam a sobrevoar o rio, pássaros famintos agitavam-se em voos rápidos para caçá-las, a correnteza rugindo a seus pés, a mulher dentro do carro tentava fechar a janela para evitar o vento gelado vindo do sul. E o que se viu a seguir, sabe-se quanto tempo depois, foi o homem puxar uma perna, depois a outra e pular de volta ao solo. Desamarrou a corda do cano da bota, enquanto a pedra pendia, perigosa, sobre a correnteza em fúria. Tão logo se desvencilhou das amarras, caminhou até o carro e abriu a porta.
— Aquela pedra talvez tenha mais sentimentos que tu — ele disse, um tom magoado na voz tremida de medo.
Um arrepio medonho lhe correu pelas costas, de cima a baixo. Podia estar morto naquele momento, sendo levado água abaixo, sabe-se para que buraco perdido da terra.
— Pensei que essa tua brutalidade tinha um limite – ainda tentou argumentar. — Afinal, sou o pai dos teus filhos.
Ela só não continuou na mesma posição porque, com a mão direita, precisou ajeitar outra vez a gola do casaco para se proteger do vento gelado que entrou quando a porta foi aberta.
— Eu admito que sou um canalha, mas essa tua insensibilidade nem um animal selvagem tem.
Girou a chave na ignição e acelerou com força para reaquecer o motor. Uma nuvem preta de fumaça saiu pela descarga. Depois ele deu a partida.
— Queria que tu soubesse que voltei atrás não por falta de coragem. Foi por causa das crianças. Minha vida não vale nada mesmo. Mas uma criança precisa de um pai, por mais canalha que ele seja.
A Variant derrapou à saída da ponte, depois tomou o rumo correto da estrada.
— Sei que te fiz sofrer… Mas quero que tu entenda que foi num momento de fraqueza.
Este foi o único momento da viagem no qual a mulher deu mostras de que poderia expressar algum tipo de reação. Puxou um pouco de ar, talvez com a intenção de ganhar fôlego, mas foi só. Nada além de um ligeiro engolir em seco pôde ser delatado de diferente na solidez de seu semblante de pedra. Recompôs a aspereza do rosto e olhou para o vazio, como se nada tivesse ouvido, enquanto ele continuava fiel à tarefa de conduzir o carro sobre os repetidos buracos da estrada. E a velha Variant laranja, por sua vez, seguiu gemendo, sofrida, mal podendo andar em frente e suportar o peso da própria desolação.
Tailor Diniz é escritor e roteirista. Autor de Transversais do tempo (2007, Prêmio Açorianos de Literatura — Melhor Livro de Contos), Crime na Feira do Livro (2011, finalista do Prêmio Açorianos de Literatura e publicado na Alemanha), A superfície da sombra (2012, lançado na Bulgária e adaptado para o cinema) e Em linha reta (2014, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura). Pós-flagrante integra o livro inédito O marido da equilibrista e outras histórias de relacionamentos.