O TAL BEIJO POLÊMICO – ANGELA DAL POS
Todo mundo já falou e se indignou com a moça que deu um beijo no seu agressor, no final do júri em Venâncio Aires, condenado pelos cinco disparos de arma de fogo desferidos contra ela, em janeiro de 2020. Saiu na imprensa e virou polêmica. Teve gente tão revoltada contra a moça que nos comentários da matéria escreveu que o cara deveria ter sido mais eficaz nos tiros.
Não julgo o comportamento dessa moça, vítima do ciclo da violência, incapaz de sair de um relacionamento abusivo e tóxico. Como Promotora de Justiça, eu e muitos e muitas colegas já vimos mulheres perdoando seus agressores e, mais, sentindo-se culpadas por terem causado o comportamento raivoso no parceiro e se arrependendo de terem buscado a justiça, querendo “tirar” o processo criminal iniciado contra ele. E a história se repete: agressão, pedido de perdão, romance, nova agressão. O problema é que essa agressão vai ficando cada vez mais grave, chegando ao ponto de muitos matarem as companheiras, como no caso do júri esse do beijo, que só não foi consumado porque alguém lá em cima não quis. Ou o universo queria nos fazer refletir sobre o tema.
Também não julgo quem sinta raiva da vítima por perdoar o agressor. Até porque nem sempre fui capaz de entender esse comportamento condescendente das mulheres vítimas. Num dos meus primeiros júris, há mais de vinte anos quando assumi na carreira, em uma Comarca do interior do RS, também senti raiva da vítima e tive convicção de que ela deveria “gostar de apanhar”, porque havia vários processos em que ela tinha se retratado da representação nas lesões corporais e desistido de processar seu agressor, porém aquele era de tentativa de homicídio e não cabia a ela escolher. O réu foi condenado, apesar de ela mudar sua versão inicial e afirmar que não tinha sido agredida. A minha vontade era de condená-la também, porque não conseguia compreender esse comportamento de perdão. Como ela podia voltar atrás e continuar nesse relacionamento? Além de fazer a todos nós operadores do direito de bobos trabalhando para punir uma pessoa, quando sequer a vítima tinha interesse nisso. Naquele tempo não havia a lei Maria da Penha, nem o entendimento de que a lesão corporal no âmbito da violência doméstica independe da representação da vítima. Igualmente, eu era jovem e inexperiente, ainda não tinha estudado o tema e refletido a fundo para conseguir romper a minha bolha de certezas, entender o contexto cultural e me colocar no lugar da vítima. Se eu que tive oportunidade de estudar e de frequentar uma universidade, recém estou conseguindo romper com minhas próprias crenças e enxergar as questões de gênero que me cercam, o que esperar dessas mulheres que foram criadas no olho do furacão da violência doméstica de seus familiares? Há que reconhecer nossos erros e fraquezas, a fim de aprender com eles e evoluirmos. Meu antigo entendimento não é motivo de orgulho, me dói na alma, mas foi necessário para eu acordar e me dar conta de que também sou fruto do corpo social que nos forma, e a dificuldade que é tratar desse tema.
Estamos todos inseridos numa cultura patriarcal em que mulheres foram doutrinadas a servir aos homens, a serem recatadas, submissas. Fomos ensinadas, ainda que de forma velada, que para termos valor precisamos de um homem ao nosso lado. E certos homens usam isso para diminuir ainda mais a autoestima das mulheres e fazê-las acreditar que sem eles não conseguirão nada, não são nada. Outras ainda são dependentes financeiramente e acabam perdoando quem lhe fez mal por não ter como sustentar a si e aos filhos, situação ainda pior porque as crianças aprendem a aceitar a violência como forma de afeto e reproduzem-na quando adultas.
Lembro de uma audiência do Juizado Especial Criminal, em que uma senhora registrou ocorrência contra outra mulher por perturbação da tranquilidade ou algo do tipo. Durante a conversa com as duas, ficou claro que a questão de fundo era o marido dessa senhora que estava “andando” com a outra. O juiz perguntou por que ela não tirava satisfação do marido, ao invés de brigar com a outra, ao que a senhora respondeu: “ah, mas ele é homem, tá no papel dele, ela que não tem que dar conversa para o marido alheio”. Não esqueci mais dessa história.
Pois daí já vemos o tamanho do problema, enraizado até as entranhas, e a dificuldade de falar em igualdade de gênero em uma sociedade que aceita os comportamentos abusivos dos homens contra sua mulheres como normais, da mesma forma que entende culpada a mulher que foi estuprada porque usou uma saia curta, ou que provocou o ciúme do marido ao conversar com o vizinho e, portanto, ele estava no direito de dar-lhe uma tunda de laço, como se diz por aqui no Rio Grande do Sul, ou alguns tiros.
É um assunto árido, pois nós mulheres, feministas ou não, somos as primeiras a julgar os comportamentos umas das outras e suas escolhas, quando na verdade precisamos de união, uma vez que todas sofremos as questões de gênero em maior ou menor grau. As mesmas mulheres independentes e bem sucedidas que julgam as que perdoam os agressores, não se dão conta quando elas mesmas mantêm relações psicologicamente tóxicas com seus parceiros e não conseguem sair. Ou quando condenam comportamentos de mulheres que se fossem praticados por homens seriam “culturalmente aceitos”.
Não é difícil encontrar pessoas criticando condutas de violência física de homens contra suas parceiras, pois esse é um ato extremo e visível. Porém é apenas a ponta do iceberg de pequenas violências diárias, principalmente psicológicas que aceitamos como naturais, e formam esse bloco chamado diferença de gênero, que se não for trazido à tona, descortinado, refletido, dificilmente irá se romper.
Angela Dal Pos nasceu em Caxias do Sul. É Promotora de Justiça nesta capital e está radicada em Porto Alegre há mais de quinze anos. Publicou dois contos na obra antológicos (Ed. Nova Prova), onde também foi uma das Organizadoras. Participou de oficinas literárias de Charles Kiefer, Lea Masina e Luiz Augusto Fischer, Altair Martins, dentre outras. Graduou-se no Curso de Formação de Escritores e Agentes Literários pela Unisinos. Foi premiada em concursos literários (no gênero conto e crônicas) e possui vários textos em antologias. É autora do Blog Morena de Pintas e, em 2017, publicou o livro infantil Picolé Lelé pela editora Pergamus.