De ‘NENHUM AMOR IGUAL AO MEU’, de Álvaro Santi
NOTURNO DE OLINDA
Do alto dessa colina,
onde plantaram mais cruzes
do que alguém contar consiga,
não vejo o mar, no momento.
Perscruto a noite dos tempos,
vasto horizonte da história,
em busca de vida, de luzes,
nem sei se em mim ou lá fora.
O passeio dura pouco,
mas agrada a companhia.
E a paz da noite convida
a partilharmos um sonho.
É então que avisto o par
‒ tão jovens ‒ poeta e musa.
Vão subindo essa ladeira,
há duzentos carnavais.
Mesmo luar sobre as palmeiras,
mesmo perfume do mar…
A vida, porém, mais dura;
o amor, quem sabe, melhor?
Seus olhos buscam, ao longe,
um país que não virá;
não desse mesmo horizonte,
onde a aurora se apresenta,
que cruzaram seus avós,
fugindo do que houve lá.
Nenhum deles dois suspeita
que ele vai nascendo, já.
País sem canga ou cadeias,
que achará, a duras penas,
o seu lugar neste mundo,
ainda não se sabe qual.
Com tanta história e desejo
quanto lhe pudermos dar,
com alguma dose de rumo
e outro bocado de sorte,
ventos de sul ou de norte:
certo é que ele existirá.
Poeta e musa sonham com esse dia,
que só virá depois, muito depois
que a cobiçosa preia do gentio
tiver rasgado à força o continente.
Ainda antes de saber dos vales,
alheio ao fluxo dos caudais gigantes.
Depois que não houver mais prostitutas
à espera diante desse hotel de luxo.
À mesma mesa todos estarão reunidos.
Os índios viverão em paz, no seu costume.
Não haverá mais rei, nem clero, nem nobreza.
Nenhum tesouro irá, por sobre o mar,
quer seja fruto, rocha ou animal,
encher as arcas de usurário ou cardeal.
O bacharel será como o artesão
e aquele que já foi escravo um dia,
ao lado do que era o seu senhor,
serão de fato e de direito iguais.

ESFINGE
Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito
nutrindo-me de Petrarca
Ronsard, Camões e capim.
(Drummond, “O Mito”)
Junto à cama, ainda quente,
pés descalços no tapete,
está sentada a mulher.
A cena, em si, é singela:
mais que isso, não revela
a quem pretenda entender.
No espaldar de uma cadeira,
ela apóia sua mão.
Na mesa de cabeceira,
um solitário abajur,
ponto de interrogação
riscado em ouro no azul.
Para onde está olhando?
De que longes terá sede?
A cena mais não me conta,
mas deixa que eu acrescente
os desejos mais humanos,
com que todo o mundo sonha.
Terá visto, pelo vidro
da janela, um passarinho?
Invade suas narinas
o cheiro da maresia?
Pressente um sério perigo?
Escuta um ruído lá fora?
Serão passos de um vizinho,
de quem talvez se enamora?
Sonha a poeira dos caminhos,
por entre as flores que vêm
inaugurar primaveras?
Ou, em silêncio, arquiteta,
seu luminoso destino,
neste planeta ou no além?
Na parede, o planisfério
parece querer lembrar
que a aparente quietude
desse aposento modesto
não é mais que um interlúdio
entre jornadas no ar.
Nesse mapa, ela procura
o seu próximo destino.
(Serve também como régua:
se com ele nós medirmos
homem, mulher, criatura,
pouca coisa nos molesta.)
Haverá outrem com ela
– o autor deste retrato?
Ou o quarto está vazio?
Olhará para a janela?
Será casa ou prédio alto?
Ficará perto de um rio?
Para que, meu deus, pergunto
tantas coisas a um retrato?
Não há respostas, só fatos,
nem sei mais que perguntar.
Melhor deixá-la onde está
e ir tratar de outro assunto.
Melhor deixá-la onde está,
não há sentidos ocultos,
nada tenho a acrescentar.
Seja qual for seu futuro,
já não o pode alcançar
o meu sentimento obscuro.
Deixemo-la estar aí,
com seu vestido lilás
e esse abajur ao lado.
Deixemo-la ser feliz,
felizes de haver deixado
de buscar o que não há.

MANGUEZAL
Sexta-feira
Cai a noite
Lama negra
No horizonte
Lua cheia
De janeiro
Vai nascendo
Urubus no vento
Sobre o manguezal vermelho
Cidade dos caranguejos
O fumo negro da usina
Comendo a cana, comendo.
Areia preta na praia
Sobre a branca faz desenhos
Cais de pedra
Sem conserto
Água lenta
Rio que escorre
Prisioneiro
O menino magro
Vem sorrindo à toa
Tarde boa
Peixe farto
Rede cheia
O menino preto
Desce a correnteza
Pão na mesa
Bom de remo
Vai vivendo.
Álvaro Santi (Lajeado – RS, 1964) Poeta e músico, lançou seis livros de poesia e o CD independente Trem da Utopia (2011). É Bacharel em Música e Mestre em Letras pela UFRGS; e Especialista em Gestão e Política Cultural pela Universidade de Girona (Espanha) e Instituto Itaú Cultural. Técnico em Cultura na Prefeitura de Porto Alegre.

Fui ao Nordeste e voltei levada por essa linda poesia.
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