Entrevista com Daniel Gruber, autor de ‘A FLORESTA’

Nesta edição, conversamos com o escritor Daniel Gruber, que acaba de lançar seu terceiro livro, “A Floresta”. Pela terceira vez ele publica pelo seu selo próprio “O Grifo” e, dessa vez, mergulha num enredo de folk horror ambientado nas pequenas cidades do interior riograndense de colonização germânica no qual medo, violência e bruxaria disputam a atenção de uma pequena comunidade de emigrantes.

A Floresta” é teu mais recente livro e costuma
ser descrito como um livro do gênero folk horror,
o que às vezes é traduzido no Brasil como “terror rural”.
Isso contradiz bastante uma imagem idílica
que muitas vezes é feita do mundo rural,
talvez um eco romântico ainda. De onde vem
essa imagem sombria do mundo rural?
São referências da tua vida? Em que medida há influências
culturais e pessoais na elaboração de um
enredo de terror como o presente em “A Floresta”?

O folk horror surgiu no contexto de contracultura do final dos anos 60 e tem muito a ver com essa relação entre a natureza e a vida urbana, o materialismo e o esotérico, o primitivo e o civilizado, o antigo e o novo, etc. Por algum motivo esses temas estão voltando ao interesse popular hoje, talvez porque a vida contemporânea, urbana e dita civilizada está em crise evidente. O meio rural é um espaço ambíguo no folk horror, ao mesmo tempo sedutor e fascinante, mas também terrível e ameaçador. É um tema que me fascina, certamente, tanto pela beleza quanto pelo perigo, a contradição implícita nela.

Eu já gostava do gênero, mas esses sentimentos foram aflorados quando me mudei de uma cidade essencialmente urbana para uma cidadezinha do interior, onde a cultura e o ambiente carregavam essas oposições no dia a dia. Escrevi o livro no período que morei lá, então certamente a minha vivência influenciou bastante na imaginação desse terror.

Sabemos que os elementos folclóricos brasileiros
são extremamente matizados, ou seja, têm
proveniência de todas as partes do mundo,
além dos de matriz indígena. Como
reverberam em “A Floresta” os elementos
e costumes da região de colonização alemã?

Alguns leitores de outros estados acharam o livro “europeu” demais, mas quem vive aqui no Sul e conhece a região de colonização se sentiu muito próximo da história. Realmente, a colônia de imigrantes parece ser um outro país dentro do Brasil. O ponto de convergência da história talvez seja a lenda folclórica de origem indígena que se mistura aos personagens alemães, mas essa lenda é uma invenção minha, ela não existe de fato no nosso folclore, apesar de ter sido baseada em várias lendas tupis e guaranis. A decisão de acrescentar uma lenda fictícia foi uma tentativa de não cair na representação estereotipada.

No teu livro, há poucas referências históricas
e geográficas precisas e isso confere à
ambientação um aspecto nebuloso. Muitas vezes
é possível pensar que não se está diante
de um enredo brasileiro, mas a um mundo rural autônomo.
Como é que tu percebes a literatura de terror rural,
ou folk horror, em relação à literatura brasileira
de um modo geral? Também é uma espécie de existência
autônoma ou se poderia dizer que é uma integração em evolução?

Acho que é uma integração em evolução. Futuramente, espero que surja um cenário folk horror tipicamente brasileiro, baseado em ambientes, lendas e personagens típicas. No meu caso, foi um intermediário: usei um cenário brasileiro, mas com um pé na Europa, de forma que a atmosfera do folk horror (que é originalmente britânico) fosse mais adaptável ao nosso lugar. O motivo de não dar as coordenadas exatas de onde se passa a história foi uma forma de não regionalizar o livro. Eu não queria que caísse na categoria de “literatura regional sul-rio-grandense”, até porque essa história bem poderia se passar em Santa Catarina ou no Paraná, onde há um clima parecido e regiões de colonização alemã.

Chama a atenção no teu livro a presença de personagens
femininos muito fortes e que reagem à violência sofrida
com equivalência. Sob esse ponto de vista, tudo bem
pensar que se trata de um livro do gênero
folk horror com viés feminista? Em sociedades rurais,
onde o poder patriarcal costuma predominar, é possível pensar
em “A Floresta” como um ambiente de vingança de gênero?

É possível, claro, mas isso já não está mais sob meu controle. Quem dirá se isso é verdade serão os leitores e leitoras. A questão que me cabe explicar é que eu já tinha escrito um livro anterior sobre a perseguição de mulheres acusadas de bruxaria, mas em A Floresta eu queria escrever uma história sobre bruxas sem pensar nos aspectos histórico-sociais, isto é, sem me preocupar se elas seriam heroínas, vilãs ou vítimas. Eu queria apenas expressar meu fascínio por esse tema e por esse imaginário. Esse foi o único motivo pelo qual as personagens principais são mulheres. Se fossem homens, essa história não existiria. Claro que não sou leviano a ponto de desconsiderar que o tema da bruxaria, especialmente hoje, está intrinsecamente carregado de carga política e bastante relacionado à agenda feminista. Eu tinha essa consciência, mas não pensei em escrever uma história especificamente feminina ou feminista.

Eu realmente fiquei surpreso que a obra tenha sido muito bem recebida pelas leitoras, inclusive por muitas leitoras feministas, que consideraram a história uma denúncia à violência doméstica e à opressão patriarcal. Houve também leitoras que acharam o contrário, que as representações femininas no livro não ajudassem na causa. Eu entendo e respeito os dois pontos de vista. Só posso dizer que minha intenção nunca foi escrever uma história com viés feminista, porém sempre tive muito cuidado ao tratar de personagens femininas. Queria que Anna e Mathilde se parecerem com mulheres de verdade, e não com elucubrações toscas do imaginário masculino. Os resultados de um escritor homem representando experiências femininas nunca será satisfatório, sabemos disso, mas fiz o que estava ao meu alcance para diminuir esse abismo. Inclusive, acredito que Anna Schutz é, de todos os personagens que criei, a mais próxima de mim.

Numa anotação do livro, tu comentas que ele foi
escrito durante o período crítico de confinamento
imposto pela pandemia do coronavírus. Em que medida
a circunstância histórica presente influenciou
o enredo e tua forma de abordá-lo?

O fato de estar confinado em casa permitiu que eu escrevesse o livro de forma muito rápida, em cerca de três meses. Além disso, o clima de isolamento, medo, angústia, paranoia e sufocamento gerado pela pandemia está retratado em todo o enredo.

A Floresta” é o terceiro livro que tu publicas
sob o teu próprio selo editorial, O Grifo.
Como tem sido a experiência editorial independente
e quais desafios implicam no teu trabalho?
Quer dizer, o que poderia melhorar no mundo
e mercado do livro para que projetos independentes
prosperem com bons resultados?

Eu criei o selo (O Grifo) por causa da frustração de não ter encontrado uma editora que quisesse publicar meu primeiro livro (O Jardim das Hespérides). Decidi então que faria tudo sozinho e do meu jeito. Foi um cainho árduo, muito cansativo mesmo, mas recompensador. Saber que, mesmo sendo minúsculo diante de editoras gigantes, meus livros estavam chegando aos leitores foi realmente incrível. Além disso, muitos deles me mandam mensagem dizendo que adoraram, isso vale mais do que qualquer cifra. O que não quer dizer que escrevo e publico para ganhar tapinha nas costas, é muito caro produzir um livro e consome um tempo gigantesco, de forma que ter um retorno financeiro justo é o mínimo que se espera. Agora dedico cem por cento do meu tempo à editora, publicando meus livros e de outros autores, e estou começando a conseguir sobreviver disso. De toda forma, é uma escolha, e não faz sentido reclamar de uma escolha, a verdade é que tenho muito orgulho dela. Não sei como vai ser daqui para frente, mas os leitores têm reagido muito bem a autores e editoras independentes. Além de terem uma proximidade maior com eles, já sacaram que os livros mais interessantes hoje estão fora dos grandes eixos.

A seguir, leia os dois primeiros capítulo de “A Floresta”.

1

No dia do seu aniversário, enquanto ela dormia e o sol se levantava no horizonte, ele invadiu seu quarto e a levou.

Ela sonhava com um castelo de torres altas e jardins floridos quando ele apareceu diante da porta feito uma sombra negra, tapou sua boca com a mão grossa e encardida, arrancou-a da cama com um puxão e a imobilizou em seus braços. Ela tentou lutar, mas ele a arrastou pela sala — onde o pai, a madrasta e o irmão pequeno permaneciam sentados, calados e de olhos baixos — e gritou ao ser colocada no lombo do cavalo, mas ninguém ouviu ou pareceu se importar.

Cavalgaram por fazendas e estradas desertas, e já era um dia pleno quando chegaram a uma casinha no meio do mato, de paredes brancas e revestidas de hera. Ele a jogou num quarto pequeno e sufocante, de janelas pregadas com tábuas cheias de musgo. Uma jarra de água, uma caneca e um prato de comida a esperavam do lado da cama. Assim, por longas horas ela ficou ali sozinha, mergulhada na escuridão.

Nenhum bravo cavaleiro viria resgatá-la, porque aquele homem era seu marido.

2

Anna era nome de moça boa, moça direita. Só percebeu isso depois de ter uma visão em que seu pai era esfaqueado.

Seu casamento foi num domingo de sol, no final de abril. Ela observou as mulheres trazendo mesas grandes da congregação e as dispondo no pátio, cobrindo-as com charque, linguiças e cucas açucaradas. E penduraram varais de fitas coloridas e arranjos floridos em postes de madeira, e os homens trouxeram carnes de caça para assar — veados, javalis e tatus — como se uma dádiva estivesse se realizando ali.

Rapazes de ternos escuros tocavam gaitas e rabecas, e moças de cabelo trançado e vestidos levemente coloridos dançavam marchinhas alemãs. Os mais velhos formavam um círculo ao seu redor, como faunos em volta de ninfas indomáveis, batendo palmas e dando tapinhas em seus quadris, muito sorridentes, pois há anos ninguém mais fazia festas naquele lugar.

Anna ponderou sobre suas opções: fugir pelo mato e viver como um animal, se alimentando de ratos no banhado, ou acatar a decisão do pai e ter uma vida medíocre para sempre. Certamente ela poderia ter tido um futuro mais ensolarado, mas os desmaios e crises de sonambulismo na infância a confinaram em seu próprio mundo de sombras. Então esse casamento parecia ser o mais conveniente a todos. Pelo menos para o pai, o pastor Franz Schutz, pois o vater sempre sabe o que é melhor para as filhas. Mesmo que seja entregá-la ao herdeiro de um rico e falecido fazendeiro da região. Mesmo que houvesse um dote polpudo nesse acordo.

Die gute Tochter, cumprindo seu dever. A ovelha humilhada. Esse arremedo de vida que não haveria de lhe servir jamais.

Entocada no quarto, Anna se ajeitou com o vestido negro que Catarina, sua madrasta, lhe emprestara de seu próprio casamento (o primeiro e o segundo). Era tradição casar-se de preto, que lhe soou um tanto apropriado, já que a cerimônia parecia mais um funeral. Para uma moça, pelo menos, o casamento era a morte de algo importante.

Deixou que a madrasta refizesse três vezes a trança em seu cabelo castanho, volumoso e anelado, cortado à altura do queixo depois que as pontas pegaram fogo em um acidente doméstico. Contou até três em silêncio cada vez que Catarina insistia em dizer que eles já estariam crescidos no verão. Prendeu-os com o alfinete de ferro longo e pontudo que muitas vezes imaginou atravessando sua garganta, e Catarina pôs uma grinalda de margaridas sobre sua cabeça, do mesmo jeito que faria a uma linda boneca de pano.

A madrasta empenhava-se em disfarçar a rigidez, contida em cada um de seus gestos, mas àquela altura ninguém mais podia deixar que um pensamento ruim lhes assombrasse.

No fundo, Anna era igual a qualquer moça de dezoito anos naquela terra inculta, dura e pobre, à mercê de um pouco de conforto e alegria. Mesmo que preferisse a companhia de livros à de pessoas, aquele dia chegaria para ela também, o dia em que a terra árida terminaria por dobrá-la. Só quando olhava para as crianças dançando, suando e gargalhando ao redor do gramado é que pensava na vida como algo mais arejado que apenas o fardo de sobreviver a um dia de cada vez.

Não se reconheceu no espelho, enfiada naquele vestido apertado e pavoneante. Preferia as roupas soltas e leves, sem o medo de sujá-las. Preferia os pés descalços, o cabelo solto. Suas olheiras agora se destacavam mais fundas e arroxeadas, a cicatriz na pálpebra mais brutal. O que enxergava ali, refletido, era apenas um pálido fantasma de pé sobre a própria sepultura.

No pátio, seu pai espalhava sorrisos e discursos. Explicava suas ideias grandiosas ao único homem que lhe concedia atenção, que Anna gravou na memória por lhe causar um estranho incômodo, alto, magro, todo vestido em couro cru.

Uma moça se aproximou dele, enroscando-se nos seus braços, provavelmente sua filha. Foi então que Anna a notou pela primeira vez, a moça mais loura que já andara por aquelas terras. Pequena e de uma beleza estranha, a pele leitosa, o rosto afogueado, os lábios como um coração sangrento. Uma trança dourada descendo pelas costas, atraindo o olhar para o corpo esguio, ela faria qualquer homem cair no pecado da luxúria.

A moça rondou a sombra do pai, olhando para a casa e alisando o vestido muito asseado, curto demais nas pernas, deixando à mostra suas botas masculinas. Parecia a roupa de uma sereia, se sereias usassem roupas. Anna reparou nos seus adornos, cuidadosamente deixados à mostra — uma gargantilha de renda preta em volta do pescoço, um bracelete prateado dançando em seu pulso minúsculo. Ela era diferente de todas as pessoas ali, e as atenções se voltavam a ela como uma força de gravidade. Parecia levitar sobre as cabeças prosaicas daquela gente como uma imperatriz em cima de uma liteira.

Enfim o belo retrato de família que todos esperavam encontrar fora abalado pela sua presença. Pais puxavam suas crianças para perto quando ela passava, a olhavam com julgamentos.

— Está na hora — a madrasta veio dizer na porta do quarto. — Faça o favor de não chegar atrasada, só para variar.

— Já vou — Anna respondeu com voz calma e firme.

Ao sair, percebeu que suas mãos tremiam. Tapou o rosto por causa da luz. Viu o pai e o noivo na frente do altar, ensanguentados, as roupas retalhadas em muitos cortes e perfurações. Fechou os olhos e abriu novamente para afastar aquela visão.

Depois de vencer o clarão, viu os convidados reunidos em duas fileiras, formando um corredor para que ela passasse. Começou a contar. Demorou exatamente um minuto e treze segundos para ter coragem de dar o primeiro passo. Alguém passou correndo com uma jarra de água e respingou nela, encharcando as costas de seu vestido. Como poderia ficar pior?

Então foi impulsionada pelas mãos de alguém. A voz cantada e aguda do pai soou em sua cabeça: você precisa mesmo de um empurrão, não é, Anna?

Aquele que seria seu marido a aguardava na ponta do corredor, metido num terno marrom-escuro, um chapéu largo na cabeça e uma flor vermelha na lapela. Atrás dele, o pai de Anna folheava a Bíblia, procurando as palavras certas para aquele momento. E o pastor Franz Schutz então falaria em nome de Deus para declará-la mulher daquele homem.

Diante do altar, o irmãozinho trouxe as alianças. Seu noivo tomou sua mão e enfiou o anel em seu dedo. Seu pai mastigou alguns salmos, fazendo uma voz grandiloquente, e durante intermináveis minutos ele falou, falou e falou, até que Anna compreendeu que estava casada. Estava feito e era para sempre, do mesmo jeito que se apunhala um coração desprevenido.

Johannes, o noivo, se aproximou para beijá-la, mas Anna desviou o rosto por reflexo. Os olhos dele ferveram, as mãos a agarraram pela cintura e ele enfiou sua língua dentro da boca dela, demarcando sua conquista. Os convidados aplaudiram e assoviaram. Foi mais rápido que ela então: Anna o empurrou e deu um tapa em seu rosto.

As vozes cessaram e Johannes permaneceu com a cabeça inclinada, como se aquela reação o tivesse paralisado ou entortado seu rosto. Anna se deu conta só um segundo depois de ter feito, tarde demais para se arrepender. Manteve-se firme e se esforçou para não demonstrar medo ou arrependimento.

Johannes endireitou o rosto, ajeitou o cabelo com frieza e sorriu sem olhar para os lados, o que fez Anna gelar. Ela jamais tinha visto aquele homem sorrir. O rosto dele agora se avermelhava, não só do lado que ela estapeou, mas todo ele. Johannes era um homem orgulhoso e acostumado a ter o que queria, e homens assim não sabiam lidar com os olhares de uma plateia.

O pai de Anna se apressou em dar fim à cerimônia e todos voltaram a tagarelar sobre seus assuntos. Aquela não seria a primeira nem a última vez que algo escandaloso aconteceria em um casamento. Mesmo assim, Anna desejou estar morta dali a algumas horas. Não. Ela desejou que um grande incêndio apagasse da História aquele lugar e aquelas pessoas.

O baile se iniciou com a Polonaise Aufzug e seguiu com valsas e polcas. A comida foi servida e logo todos tinham se esquecido dos problemas. Anna olhou para o outro lado da mesa, atraída pelas risadas, e enxergou a loura magra na ponta, cochichando com duas meninas da comunidade, germânicas como todo mundo, sorridentes e vivazes, fazendo-lhes rir com comentários ao pé do ouvido. Assim que Anna a avistou, sua atenção se prendeu nela e não soltou mais. Desejou saber sobre tudo o que falavam. Desejou rir junto com elas, mas isso logo se dissipou na enorme tristeza que engolia aquilo tudo.

Sob o olhar atento das outras duas, a loura tirou de dentro do decote uma ampola de vidro e a despejou dentro de uma taça de vinho. Uma das moças, a de vestido azul vulgar, mexeu o líquido com o cabo de uma colher e levou a taça até um rapaz que conversava num grupinho do outro lado do jardim. Trocaram sorrisos e a moça voltou para a mesa.

Aquilo parecia uma simples travessura, alguma simpatia que Anna teria feito na infância, se tivesse amigas. Mas talvez aquele vidrinho não contivesse nada infantil.

Então aconteceu. A loura se virou e percebeu que Anna as observava. Encarou-a por alguns segundos e sorriu. O estômago de Anna se revirou num movimento involuntário e violento. Sentiu-se impelida a levantar o rosto para as nuvens escuras que se fechavam no céu e manteve os olhos ali por um longo tempo.

Mais tarde, todos se reuniram na frente da casa, onde um fotógrafo vindo de São Leopoldo retrataria o momento. Anna esperou de pé ao lado do marido até que todos se amontoassem em volta deles e nenhum dos dois sorriu. Quando o fotógrafo acendeu a pólvora do flash, um zunido tomou conta dos seus ouvidos, sua visão escureceu e ela caiu sentada.

A madrasta veio lhe acudir e o pai lhe estendeu um copo d’água. Então a chuva desabou e os convidados correram para recolher as mesas.

Anna se deitou no quarto e não saiu mais de lá. Não disse mais nenhuma palavra e não comeu mais nenhum pedaço de carne, preparando-se para o inferno que acabara de adentrar.

Quando a noite chegou, seu marido entrou no quarto sem olhar em seus olhos. O quarto era dele e agora Anna era sua também.

Ela se sentou na cama com a camisola que ele lhe dera para vestir. Johannes fechou a porta e desabotoou a camisa, seu cheiro de terra e suor impregnou todo o cômodo. Fez com que Anna se deitasse e subiu a barra de sua camisola até os joelhos. Suas mãos enormes e peludas separaram as pernas dela. Seus bigodes negros, fartos e fedorentos roçaram seu pescoço.

Ele subiu em cima de Anna e seu corpo pesou sobre a barriga dela. Anna sabia que não podia gritar. Sabia que, se gritasse, ninguém viria lhe ajudar. Apenas virou o rosto para a parede, para não encarar aqueles olhos assustadores. Segurou o grito quando ele entrou. Deixou as lágrimas rolarem no travesseiro até que elas não rolassem mais.

A luz do lampião projetou sombras disformes na parede, como uma dança macabra no interior de uma primitiva caverna. Como se houvesse outras pessoas no quarto, mas não havia ninguém. Um dia, talvez, Anna tomasse as rédeas de sua própria vida, mas não seria naquela noite. Naquela noite ela estava sozinha como sempre estivera até então.

Daniel Gruber é escritor, natural de Novo Hamburgo/RS. É autor dos livros de contos “O Jardim das Hespérides” (2017), finalista dos prêmios Sesc e Minuano, “Animais diários” (2019) e “A Floresta” (2021), todos lançados pelo selo O Grifo, criado pelo próprio autor. Sua tese de doutorado em escrita criativa, “A Noite do Cordeiro”, é um romance sobre inquisição e caça às bruxas no Brasil colonial, e deve ser lançado no ano que vem.

FICÇÃO

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