3 poemas de Marco de Menezes
pássaro, 1994
depois, bem depois
que meu amigo Luiz
se jogou do terraço do nosso apartamento,
passamos a chamá-lo de homem-pássaro
que era uma forma de rirmos
de um assunto que não nos deixava mais tristes
estava tudo previsto
ele, ou parte dele,
já havia cortado os pulsos uma vez
e tomado umas pílulas outra vez
mas isso a gente não sabia
foi o irmão dele que contou depois
ele havia subido no telhado do nosso apartamento
permanecido ali por um bom tempo, fumando e olhando
para os lados do bairro Fátima
(era bem longe o bairro Fátima)
e ele vestia uma gabardine
como quase sempre
porém aquilo não nos pareceu estranho
ao contrário, pareceu-nos versátil
mas estranheza e versatilidade são umas roupas
que a morte sabe usar como ninguém
(de Pequena madrugada antes da meia-noite, 2016)

Nenhures e Garatéia
era uma dupla de pedreiros
contratada por meu pai
para serviços vários
como
erguer a mureta lateral
que dá para a pequena horta
rebocar a parede do galpão
salpicando-a
levantar duas pernas de concreto
para a mesa de limpar peixe e cortar carne
encaixar o gradil na parte frontal da casa
calçar o caminho na parte de trás
em meio às couves
ao chegar
de manhã cedo
traziam um esprí altaneiro
e uma charla sem cancelas
mas após o almoço
sempre retornavam
sonolentos e opacos
sujeitos a pequenos acidentes
e como que assaltados
por estranhos presságios
uma tarde
uma revoada de caturritas
encantou
ao que se chamava Nenhures
e ao que se chamava Garatéia
e ambos se pareceram um só
entre as ripas de madeira
as cintas e as contravergas
ao que se chamava Garatéia
uma caturrita teria dito
que era a morte
e que espalhava
sementes curvas de asbesto
nos lindes e nas guildas
nos charcos e nos molhes
onde paisanos cindiam
e bem ali esperavam
uns zacarias cinábrios
ao que se chamava Nenhures
uma caturrita teria dito
que a vida mesmo
cujos préstimos são convocados
nas cerimônias de batismo
e nas salas de tortura
é esse engano de fantasma
que carpe o ar da cartilagem
e rompe-lhe
para não que ela cante
e sim que ela fale

O dia do morcego
cata um livro bom aí me disse o
Rafael que era um exímio buscador de livros na
estante àquela altura entulhada de volumes
e em franca desorganização
com o Bandeira bracejando com o Musil
o mar de madeira que
em contraste com o gelo em cinza das
estudantis estantes
piorava um pouco mais aquele vespertino tórrido
vai chover com certeza
mesmo que não pareça
eu disse
enquanto seguíamos no vermute e na doença
da poesia
porque os bichos estão voando muito ligeiros
ao redor da lâmpada
e porque já formam um púbis no teto branco
vai chover com certeza disse o Rafael
e seguíamos na genebra e na doença
do conto
com o Rosa roçando os sebos nas costas da Ingeborg
enquanto os gatos por ali pleiteavam
alguma imundície ou alguma gostosura ou
a bem da verdade a proteína
que se ufanava no lagar dos bichos
que ali já zumbizavam em vez de somente zumbir
e que já mais que bisavam helicoidais e justíssimos
no proveito dos fótons fritantes que a carpir deluziam
sobre o cartão das capas
que ora impacientes
queriam perseguir
em uma tresloucada fotossíntese para fantasmas
que esses livros não passam de fantasmas
foi o que disse o Rafael
enquanto eu procurava aquele voluminho vermelho
do Enrique Lihn que o Fabiano havia me presenteado
e que a calhar estava debaixo do notebook
fazendo já uma saliência mui discreta mas já causando
um desconforto ao teclarmos
é esse aqui, eu disse, achamos
é esse aqui onde tem a epígrafe
que tu vai colocar no teu sétimo livro
eu disse ao Rafael
e ele abriu o voluminho vermelho do Lihn
e começou a ler aquele poema que inicia com
“Nunca salí del horroroso Chile”
da mesma forma
interrompi
nunca sairemos da horrorosa Caxias
e foi então
que os dois gatos em uníssono nos olharam
com um ar de rápido e automático pavor
e que os dois gatos fugiram correndo para o abismo
que é o que o pavor oferece como quarto de hóspedes
e foi então que percebemos
tão mais gatos arrepiados e com calafrios no cachaço
que os próprios gatos encagaçados
que aquilo ali não era bem um inseto
não há insetos no centro da cidade
ao menos na superfície
daquele tamanho
e aquela sombra com asas pontiagudas
que penetrara com absoluta tranquilidade
na roda morta dos bichos lampagirantes
e aquele cachimbo que não
era um acari-chicote
aquele orelhudo que era
um dumbo das trevas
que agora já não sabíamos se tinha saído
voltado com as asas coladas às costelas
pelo hiato da rede da janela
ou se escondido nas dobras das cortinas
ou se infiltrado atrás dos livros
ecolocalizado
percebendo todos os aromas da sala
do vermute à barrigas crestadas de luz das mariposas
do adão às milanesas
ecolocalizado
mas sem nunca mais entender o que havia feito nem
como havia ido parar em tão estúpida situação
o coitado do morcego
que também ele
nunca saiu da horrorosa Caxias
senão que entrou ainda mais pra dentro dela

Marco de Menezes nasceu em Uruguaiana (RS) e vive em Caxias do Sul (RS). É autor dos livros de poemas As horas dragas (1999), Pés de aragem (2007), Fim das coisas velhas (2009, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias Poesia e Livro do Ano 2010), Ode paranoide (2010), Pequena madrugada antes da meia-noite (2016) e Como se constrói uma melancolia de domingo (2018). Foi editor do selo Modelo de Nuvem e atua como médico do SUS.

Não conhecia a poesia do Marco. Uma omissão imperdoável. que vou reparar assim que for possível.
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