De ‘O ENIGMA POR TRÁS DO MURO’, de Neusa Demartini

Bem vindos ao meu delírio.
(Pichação de muro de rua)

Construímos muros demais e pontes de menos.
(Isaac Newton)

Durante o passeio matinal até a frente da propriedade Frau Emma viu um cesto colocado por dentro do portão. Achou estranho, pois o marido tivera o cuidado de colocar uma caixa bem grande para receber encomendas e cartas que, seguidamente, algum caixeiro viajante entregava.  

Frau Emma chamou por Felinta aos gritos. Nervosa, porque nunca tinha visto a patroa tão alvoroçada, a cozinheira correu pensando que ela podia ter encontrado alguma cobra venenosa, a exemplo de seu finado marido. Felinta chegou e tomando ciência do motivo do susto, ficou um pouco mais tranquila. Mas em seguida alvoroçou-se ela mesma, quando viu o que estava dentro do cesto.

– Tem uma folha de papel escrita aqui, observou a Frau, curiosa.

À criada coube a tarefa de levá-la e alimentá-la com leite da casa. Catarina tinha cinco anos, Kristel seis e Gertrudes oito.

 À medida que a menina crescia, Frau Emma a observava mais atentamente. A criança, uma saudável mulatinha estava cada vez mais se parecendo ao marido. Afora a diferença na cor, nenhuma delas se parecia tanto ao pai quanto Fiinha, como já a chamava desde que fora encontrada, e passou a ser a boneca de Catarina.

A criadagem comentava que a criança era filha de Herr Helmut, pois tinha seus traços. Sabia-se que o alemão gostava de dar suas fugidas amorosas. Refugiava-se nas casas da luz vermelha, como eram chamados os bordéis de beira de estrada. Lá, os homens eram   recebidos com bebidas e as  mulheres da vida, assim chamadas pelas pessoas ditas de bem. 

Jamais Felinta ou qualquer outro criado a haviam chamado de Fiinha na presença de Herr Helmut. Este era o apelido que lhe haviam dado quando, longe dos ouvidos do patrão, assim a chamavam. Desde as primeiras horas que Felinta a levou para a vila dos empregados, recebeu este apelido e assim ficou, tal a desconfiança da paternidade.

Conforme a menina crescia, Frau Emma tinha menos vontade de sair à rua, passear pela propriedade, olhar a primavera chegando nos pessegueiros que tanto a encantavam.

Relutou em deixar Catarina brincar com ela, mas acabou cedendo diante das fugas da filha para estar com Fiinha. Cedendo, facilitou e alegrou a vida de sua caçula, que estava feliz em ter companhia naquele paraíso onde se sentia uma criança solitária e ser repreendida pelo pai por ter hábitos de gostar de estar entre os empregados. Após dois anos a senhora da propriedade começou também a chamá-la de Fiinha.

Certa vez, Catarina foi remexer na cômoda da mãe para apanhar algumas echarpes. Queria decorar, com elas, o palco que estava montando para uma apresentação de música antes da ida de Gertrudes para a Alemanha. Encontrou um papel dobradinho no fundo de uma das gavetas.

Curiosa como toda criança, abriu-o e, como já lia, reconheceu que estava escrito, com letra mal desenhada, uma palavra que a fez lembrar nome de sua avó paterna: Eveli.  Catarina não a conhecera, mas pelos pais sabia os nomes dos avós e dos tios, sua família na Alemanha, portanto sabia que Evelyn era o nome da mãe de seu pai. Leu tudo o que estava escrito no papel e, como criança distraída, deixou-o sobre a cômoda. 

– Filhas, venham cá.

Gertrudes já às vésperas do casamento, Kristel entrando na puberdade e Catarina ainda criança, acudiram ao chamado, não sem sentirem uma curiosidade sobre o que a mãe quereria com elas.  – Die Mutter muss ihnen etwas sagen[1].


[1] A mãe precisa contar-lhes algo.

Neusa Demartini nasceu em Porto Alegre (1946). Jornalista e professora da UFSM, UFRGS e PUCRS, após se aposentar da docência, dedicou-se à literatura de ficção. O Enigma por trás do muro (2021, e.book, Amazon) é seu quarto livro, tendo sido precedido por Vozes da Ancestralidade (Editora Metamorfose, 2018), Quatro Mulheres (Editora Bestiário, 2019) e Segredos da Rua Mundo, 2021).

FICÇÃO

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