1 tríptico de Lucíola Macêdo

A delícia do engano. Nuvens de chuvas e névoas deliciosas. Você não devia ter acreditado em mim. Saber-se enganada é um novo tipo de delícia, calada, como aqueles breus sedosos e sem fundo que vez por outra rasgam os céus. Saber-se enganada não lhe causa a angústia e a decepção das paixões tristes em bodas com a verdade. Vem como maré mansa, avançando aos poucos, indo e vindo, suavemente, tomando o ventre desarrumado. Enganada em suas próprias certezas, em suas intenções, em qualquer pretensão de cálculo. Areia, grãos de areia, milhões deles trazidos e levados pelas águas num fluir e refluir. Perder-se irresponsável que não quer deixar seu corpo. Apenas isso lhe parece vida. Essa fina camada avançando. Febris sulfurosos torpores a turbar o sono. Despertar em meio ao nada e flagrar-se em ardências que travam os dentes bem ali do lado esquerdo do maxilar, o mundo inteiro concentrado naquele ponto, para logo derramar-se em lábios e ancas que se enlaçam, se incensam e se aquietam. E nada que não seja isso é capaz de imiscuir-se em sua frágil existência a soprar-lhe baixinho_______ viver é diferente de existir. Se existir é trânsito entre fundo e superfície, viver é só de repente

Na nesga do amor, há sede. Cálido fio melódico luze-luze vaporoso, impregnando o pensamento, suave canção, a mesma música que a menina fazia tocar uma e outra vez, escorrendo da sala para a varanda e desta para o quintal, alcançando a mata, sacudindo o cajueiro, fazendo tombar os frutos passados. O estampido do encontro da polpa úmida com o chão arrasta seu corpo, cioso das coisas robustas, a terra revolvida, as minhocas, as formigas, os besouros e as abelhas, com seus ferrões agudos, o córrego ao pé do morro e de novo a melodia a dar voltas entre o ouvido e o ventre e o abraço. Encoberta, tudo escurece sob os seus braços talhados de noite.

Você o conduz à casa da infância. Não fosse a mata ao fundo crescida, exuberante, o cajueiro do jardim frontal abarrotado de frutos, era como se o tempo não tivesse passado. Os móveis, a tapeçaria, os quadros nas paredes. O varal no quartinho escuro onde as fotografias ficavam pregadas. As pinças puxando imagens recém mergulhadas no líquido revelador, ainda pingando. Você olha para ele rodeado em brumas. Vem-lhe a melodia daquela canção de Claude Debussy rêverie. A cama larga e uma passagem estreita. As imagens vão surgindo, penduradas no varal bem diante dos seus olhos. As palavras despencando precárias cambaleando entre o estômago e a glote vertiginosamente. Os contornos da primeira fotografia saltam para fora do quadro. Foi justo ali quando você se fez tão completamente grave e circunspecta. Os olhos arregalados diante dos animais saltando ribanceira abaixo. A Mata do Colibri, copas de árvores derretendo-se. A segunda fotografia respira ofegante. O ruído expelido pelo rasgo da ponta do envelope____ tomada de vertigem você abre os olhos. Ali estava pregado o tempo. O resultado daquele exame. Os sinais sem rumo. Um piscar de olhos e o processar da informação, apenas um sinal, e tudo estava mudado. Não era o mesmo mundo de antes daquele rasgo, nem o mesmo chão. Não era o mesmo ar nem o mesmo corpo. Não era o mesmo presente e já não havia o futuro. Não era o mesmo sangue a percorrer as veias. Não era o mesmo o ressoar das batidas do coração, fanho, rouco, bambo. Outra melodia atravessa o quartinho. Paul is dying. Philiph Glass ao piano. A imagem da terceira fotografia saltando para fora da terceira moldura. Você acompanha assombrada o seu movimento_______ ao seu lado ele te reconecta. Há o agora, há o aqui. Ele está ao seu lado e o simples estar ali arrasta o doloroso que vai afundando a olhos nus sugado por uma fresta do terreiro ferruginoso. Rumo às fossas Marianas, essa dor. O ar se aligeira trazendo uma luminosidade alaranjada. Seu corpo estremece. Terror e volúpia. A sua presença vasta__________________ como uma praia que surge apenas de vez em quando ao lado de outra praia emendando-se na seguinte. Planura que os faz lacrimejar lonjuras sem beiral, arrastando qualquer sombra de pensamento. Onde a luz do sol se expande na mesma desmedida do amor. A perder-se de vista

Lucíola Macêdo nasceu em Fortaleza (CE) e mora em Belo Horizonte. É psicanalista e poeta. Viveu em Salvador, Brasília e Ghirlarza, na Sardenha. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, é mestre em Filosofia e doutora em Psicanálise pela Universidade Federal de Belo Horizonte (UFMG). Realizou estudos de pós-doutorado na Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Como poeta, publicou Soante (Scriptum, 2013) e Balões vítreos (Quixote+DO, 2022), além de Primo Levi, a escrita do trauma (Subversos, 2014), livro finalista do Prêmio Jabuti 2015. Publicou ainda artigos em coletâneas que tratam de sua experiência clínica, epistêmica e institucional. Dirigiu a coleção de psicanálise Estudos Clínicos, editada pela Scriptum. Segundo o escritor, tradutor e professor Lawrence Flores Pereira, em posfácio a Balões vítreos,  os poemas contidos nesse livro são vislumbres do sensório que perpassa a lembrança, ou seja, uma poesia metonímica, onde tudo desfalece diante das imagens. E arremata: “O livro labiríntico de Lucíola é quase o registro de um olhar que combina ironia e a fruição da vida, prazer, delicadeza”.

1 Comment

  1. No espaço estreito do celular não cabe a poesia de Lucíola que se enovela escondendo e revelando sentidos que se respiram no excesso e na falta. Eu, leitora, quero ser digna da leitura desta poesia sofisticada. Quero escrever poeticamente também, mas o espaço é pequeno para meus olhos míopes. Meus dedos digitam centopeicamente esas letrinhas pululantes do celular. Mas sei que tive um encontro com a poesia.

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