JOAQUIM – CATIA SCHMAEDECKE

Quando eu estava prestes a abrir a porta, um arrepio percorreu minha espinha. Senti um par de olhos em voos rasantes desde a lombar até a cervical. A proximidade de minha mulher era a certeza de não haver espaço para a desistência. O mais tênue sinal de indecisão de minha parte sepultaria a minha carreira e perpetuaria o meu fracasso.

Tínhamos recebido uma advertência de alguns amigos quanto à notícia sobre a aquisição do lugar ser um péssimo negócio, mesmo assim eu fechara os ouvidos e aceitara o desafio. A facilidade em gerir o futuro da família, o dom herdado de meu pai que, por sua vez, aprendera com meu avô, um rico comerciante de uma rede de confeitarias, servira de mola propulsora na hora de bater o martelo.

Sorri para as crianças, me encostei de leve no batente e a porta se abriu. De imediato a atmosfera interior derramou sobre nós toda a sua quietude obrigando Helena a esfregar os braços. Fiz para eles a tradicional mesura, o gesto de meus ancestrais.

Enquanto os pequenos exploravam o ambiente, nós começamos a limpeza. Encontrei uma antiga moeda a um canto do corredor. Olhei-a com atenção. De um lado um brasão imperial, do outro o número duzentos e a palavra réis. Tirei a poeira de sua superfície, e detive-me um pouco mais no ano mil oitocentos e oitenta e sete exibido com precisão. Aquela era uma peça de colecionador. Eu não sabia nada sobre os antigos moradores, o que me fez no mesmo instante adotá-la como amuleto.

Trouxemos pouca coisa na mudança, conseguimos nos instalar em tempo recorde. As crianças não escondiam o entusiasmo correndo de um lado ao outro e Helena parecia ter remoçado uns seis meses, talvez um ano. Nunca fui muito bom em acertar a idade das mulheres. Ela estava feliz, e isso bastava.

Só percebi a noite lá fora quando Nati começou a choramingar se queixando de fome. Eu não encontraria nada aberto àquela hora, o jeito seria apelar para os vizinhos. Falei para todos se acalmarem e saí em busca de algo para comermos. Afastei-me uns poucos metros, e o bafo quente soprado acima da minha cabeça foi o bastante para eu me arrepender de ter saído. Levantei os olhos bem devagar e então corri. Corri o mais rápido que pude. Corri tanto, mas tanto, que agora não sinto as pernas. Estou dentro de uma fenda de concreto há mais de uma hora, o vão afunilado para o alto me impede de subir. O único lugar por onde posso sair é o mesmo por onde entrei. Através dele uma pata peluda com garras pontiagudas teima em tentar me alcançar.

De repente ouço um tilintar do lado de fora e em seguida a passagem é desobstruída. Espio, me escondo, espio outra vez. No pátio, Helena jogou o amuleto para o lado oposto. Impetuosa ela guincha alto. O sobrenome de seu pai reverbera através da madrugada.

É agora ou nunca.

Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance “A Casa da Grande Colina”. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.

FICÇÃO

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