RÉQUIEM DA MEMÓRIA, por Tatiana Cruz

Me perguntaram quando parei de lembrar de você. Na verdade não me perguntaram. Eu me perguntei.

Era domingo. A casa estava um caos e não parava de chover já fazia cinco dias. Miguel destruía ruidosamente os restos de isopor da embalagem da máquina de lavar nova. Pedro interrompia minha tentativa de finalizar um keynote para um novo cliente. A gata queria comer a comida do gato, que estava doente e não conseguia mais comer ração seca, só úmida. E ainda tocava uma playlist meio punk rock no meu celular.  Tinha muito barulho. E um silêncio enorme sobre ti.

É certamente um dos momentos mais fortes para uma mulher quando ela percebe que esqueceu um homem que amou. Não um esquecer assim de desmemória. Mas um esquecer de forçar a memória para recolher o esquecimento de volta à consciência, acolhendo-o, ninando-o e colocando-o, de novo, para dormir. É como um trauma horrível que a gente acha que jamais esquecerá mas que acaba encontrando pouso nos confins da alma, até que algum sonho o desperte. Como aconteceu na noite passada e cujo conteúdo só apareceu agora, quando tudo era barulho e quando você era silêncio e eu forçava você a reaparecer.

Explico!

No sonho era dia. E era colorido também. Eu estava sozinha e conduzia um carrinho de mão, desses de obra de construção. Dentro do carrinho, existia um boneco que eu sabia que era você. Eu estava indo enterrar você.

Na entrada do cemitério onde eu enterraria você, dois guardas fumando e conversando bloquearam minha passagem. Sorriam um para o outro, zombando de mim, camaradas como se encontravam em suor, bigode e camisa amarrotada. O mais velho, no poder conferido pelos cabelos brancos, até indicava com a mão que segurava um palito de dente uma possibilidade à direita; o que significava, na prática, que eu teria de enfrentar uma mureta baixa, a mesma na qual a dupla se apoiava. Embora percebesse no ar que a alternativa era um reforço na zombaria toda, espiei para além da mureta. Era quase um precipício. Mesmo teimosa como estava, seria como pular para a morte. Morte. Cemitério. Que ironia.

Me tomei de raiva. Erguendo as mãos, gritei com eles. E não me pergunte qual o teor das palavras porque raiva desse tipo é como um filme mudo: só ouvia o som do coração na ponta do dedo  indicador. Saíram da frente. Me deram passagem. Pelo portão principal. Pelo lugar certo por onde as pessoas entram para enterrar direito os seus mortos.

Ainda era um sonho a cores, mas não sei descrever o cenário. Só existia uma cova e um sol que deixava tudo meio desbotado. Possivelmente um meio-dia queimando um sonho. Um filme retirado da máquina antes da hora, contaminando-se de luz. Um filme queimado no qual eu divisava uma cova rasa. E você. Você no carrinho de mão não era mais o boneco. Você era o Miguel. O meu Miguel, o Miguel que brincava de destruir o isopor lá em casa.

Talvez você não lembre, mas um dia, quando nos amávamos, eu lhe contei que o Miguel morreu. Um quase-morreu. Ele tinha 46 dias de vida, seis quilos, mamava no peito – muito -, sorria e era lindo. Tenho certeza de que lhe disse até o dia e o horário do acontecimento: 6 de setembro de 2010, 18h. Eu narrei para você que fazia uma hora e meia que tinha alimentado o Miguel, colocado-o no berço e já chegava a hora do banho do final da tarde e já o escutava em seus gemidinhos, aqueles sons de bebês recém-nascidos que a gente ama e teme porque a gente ainda não entende se é morte ou vida embora ali eu nem imaginasse morte ainda. Estávamos sós em casa, eu e Miguel. Havia esquentado a água do banho, pegava-o no colo e me encaminhava para a banheira quando enxerguei-o todo azulado, olhos abertos, sem respirar, no meu colo.

Ele não tinha dado um sinal de que morreria. Não havia me preparado para o absoluto silêncio da morte de um bebê aparentemente saudável.  E até hoje não sei dizer quanto tempo durou. Não lembro de nenhum som. Lembro de um silêncio profundo de água, como deve ser a morte por um afogamento – azulada, calada. Só me recordo de pensar: “Miguel, você não pode morrer. Justo agora que você está mais gordinho, que eu já entendo você, que nos amamos tanto. O que vou dizer pro seu irmão?”.

Embora estivesse imersa dentro deste diálogo que se desdobrava para dentro, em direção a algum ponto onde mães e filhos se falam, algum silêncio de útero e cordão umbilical, outra de mim preparava uma bolsa para o hospital, ligava para o Vicente, que estava no trabalho e só voltaria para a casa às 19h, chamava um táxi e deixava recados para a pediatra.  Se não me falha a memória eu lhe contei como as coisas se desenrolaram e que, ao descer as escadas em direção ao carro, o Miguel voltava já da morte, molinho, dando uns sorrisinhos. Lembra que lhe disse que eu entrei gritando no hospital? Que ele pesava 6,5 quilos? Que me disseram que não parecia ser nada grave, apenas uma crise de cianose? Que eu menstruei de tensão, e mães que amamentam não menstruam, não devem menstruar? E que eu deitei no silêncio escuro do quarto da emergência chorando sem poder mexer um músculo da face porque eu sentia o que era uma crise de enxaqueca pela primeira vez, que eu dizia que eu jamais esqueceria o Miguel morto, tão bebê, a cena de um filho morto, lembra que eu lhe disse que a enfermeira se aproximou com água e comprimido e me abraçou e me disse que eu ia esquecer? Ela disse que a gente esquece. A gente vai esquecendo aos pouquinhos. Você lembra?

No meio-dia estourado de uma luz que mata filmes retirados da máquina em ambientes sem proteção, ali, em frente ao carrinho de mão do sonho, em frente à cova onde eu enterraria você, a aparição do Miguel, bebê, no seu lugar, me mostrou que a gente esquece, mas que a gente não enterra. A gente nunca enterra.

Deixei o carrinho pra trás e saí do cemitério. Um pouco envergonhada da briga com os guardas.

Tatiana Cruz escreve poemas, faz colagens manuais, trabalha como jornalista e estuda poesia falada feita por mulher. É curadora do projeto 1MinuteSlam no Instagram, onde reúne e divulga o abrir voz poético de mulheres ao redor do mundo e é co-fundadora do Sarau Nosotras, evento literário feito apenas por mulheres e exclusivo para frequentadoras mulheres. Autora do livro de poesia “Na minha casa há um leão” (Zouk, 2020).

FICÇÃO

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