3 poemas de Sonali Souza
RELEMBRO
Avó! Avó!
Quando pego os fios
da linha
e teço laços e nós
com a agulha de crochê que me destes
voltam a mim
nós duas.
Eu a teus pés
adorando-te,
teu silêncio negro,
tua história de mansidão,
de esquecimento de si,
viva que estavas
na sua descendência.
“Olha a saliência!”

PRAGA DO TIO BETINHO
Seu filho da’zunha,
seu filhote de cruz-credo,
num vem si metê comigo,
criar quizumba,
que sou sobrinha
de um filho levado de dona Judith
o levado morreu aos dezenove guiando uma lambreta velha – que chamava de Marlene.
Que caçava tsiu
com visgo em árvore
na mata da Baixada.
Era bamba de pipa, e me ensinava,’’’’’’’’’’’’’’’’’’
tinha umas com cerol,
e cortava muitas lá no alto do Céu.
Era mestre em lançar e jogar pião de madeira.
Jogava bola de gude, tinha umas grandes, belas, translúcidas que me enchiam de alumbramento.
Tomava banho no poção barrento.
Num si meti comigo não.

TRANSE
“Comigo, as coisas não têm hoje e antontem amanhã: é sempre”
Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas
Na tarde cinzenta
na chuva de inverno
carregada de ácido e oxigênio,
na cidade que não é minha,
cada qual com sua máscara,
dói a morte
do último Irmão Coragem,
que não sei se é o derradeiro
mas o que ficou primeiro
nos evocando
um país de sertões
e tempos de histórias
contadas,
no rádio – o Jerônimo,
depois na tv em preto e branco – os Coragem.
Caminho na chuva
deslizando nas ruas
na cidade de tantos prédios,
sigo na bruma,
eu ciborgue que chora
a morte de um Irmão Coragem
da peste de Covid-19,
prometendo seguir o caminho
na Terra em Transe
em que ele figurou altivo
(presente mesmo foi na Idade da Terra)
me juntando a outros ciborgues que choram
a buscar o vento da mata
da cabocla Jurema
em que me encantei
criança.
Sonali Souza nasceu em 1962 em Nova Iguaçu que tinha muito ainda de seu mundo rural. Graduada e licenciada em Ciências Sociais pela UFRJ. Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ. Na dissertação de mestrado, analiso os impactos sociais dos loteamentos urbanos implementados em Nova Iguaçu nos anos 1950-70. Poemas e crônicas publicados em jornal de Nova Iguaçu, coletâneas de poetas de Nova Iguaçu e revistas eletrônicas.
