TATUÍ, por Pedro Matias

L. me enviou outro e-mail. Isso significa que terei de lidar com o fato de amar L. e odiar absolutamente tudo que ele escreve. Não. Isso está errado. Eu não odeio o que ele escreve: apenas considero irrelevante. Eu odeio ter de encontrar alguma coisa para falar sobre seu texto. Há algo de banal em todos eles. Às vezes, a banalidade é boa: nesse caso, ela é apenas ruim. Sabe-se lá o que L. pensa de sua “literatura”.

Eu também não sei o que ele pensa de nós. Eu odeio gente excessivamente feliz, e ele parece sempre caminhar na superfície. Será que ele olha para baixo algum dia? Será que percebe que eu estou lá embaixo? Eu estou quase afogada, fazendo boca a boca em mim mesma. Qualquer hora, ele pergunta no que estou pensando. Eu não estou pensando: estou sentindo alguma coisa que me desconecte daqui.

L. não é mau: se fosse, eu poderia amá-lo por mais tempo. O problema é que percebi que L. é só um sujeito da superfície. Eu sou dessas que afundam, sabe? Eu sou dessas que vive mutilada pela pressão. Eu sei que digo que sou dessas, mas nunca encontrei outra como eu. Sabe? Vale a pena? O problema é que não há outra opção: eu só posso ser eu. E se eu pudesse ser uma dentista loira, dentes mais claros que vaso sanitário alvejado, casada com um rentista que conheci ainda na escola? Eu ia querer? Eu ia gostar disso?

Eu perguntei se L. tinha certeza de que eu era boa para a vida dele. Ele me disse que eu era incontornável: uma flor no caminho. Eu sou um objeto voador não identificado em rota de colisão com todo tipo de babaca que pensa (pensa?) que é o primeiro a me escrever um poema, a me fazer um quadro, a declamar um monólogo pra mim. Eu quis mesmo enxergar algo de bom e estragado em L. Eu quis pensar que ele era um golfinho, uma orca, mas ele era só um tatuí.

Isso tudo foi antes de eu descobrir que ele tinha me traído. E eu só soube do chifre depois de saber que ele era tatuí. Eu já amei tubarões, cavalos marinhos, lulas, tartarugas e todos os tipos de peixe: o quão estragada eu tenho de estar para ter me apaixonado por um tatuí? O meu problema é que eu sou profundamente decente. Eu não vou, L. Sinto muito. Eu costumava comer tatuís na frigideira quando eu era pequena e ia acampar com meu pai.

Pedro Antônio Matias da Silva é licenciado em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Letras pela UFRGS e doutorando em Letras pela mesma universidade. Além disso, é professor há mais de uma década, atualmente da Pan American School de Porto Alegre.

FICÇÃO

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