Por Ezra Pereira
«Schopenhauer não entendeu que sem os Gregos, em filosofia, nem sequer se começa». Schopenhauer morreu em 1860. Cento e sessenta anos depois da sua morte, cento e vinte anos depois da morte de Nietzsche, que o considerou, até o fim, seu mestre, teremos nós, modernos, na segunda década do segundo milênio depois de Cristo, entendido? As palavras citadas, severas, impiedosas, foram escritas por Giorgio Colli na sua obra Dopo Nietzsche, a mais bela confrontação que existe com o pensamento do célebre autor d’O nascimento da tragédia, uma tentativa, esta última, de compreensão dos Gregos e do seu pessimismo. E apesar da polêmica filológica que essa obra despertou, na verdade, poucos penetraram como Nietzsche no coração do mistério grego.
Em filosofia, só Giorgio Colli foi mais longe do que Nietzsche. E Giorgio Colli não concebia a filosofia separadamente da filologia, no sentido mais acadêmico e no sentido mais profundo do termo, uma atividade «que vê o mundo e a vida como uma grande expressão e estuda apenas para descobrir o que está por trás dela […] Filologia é amor de tudo o que aparece, de todo o fenômeno […] busca da verdadeira claridade, da luminosidade grega […] ela quer uma luz que seja quente, vital […] O filólogo é um grande amante: estuda e espia cada expressão para descobrir uma intimidade que seja igual à sua, para encontrar uma ligação com o mundo […] o seu rasgão está na procura incansável da interioridade concreta de outro homem, no anseio de apreendê-la na sua totalidade e senti-la como própria […] Nesta atitude ele é muito semelhante ao poeta» (Giorgio Colli, Apollineo e dionisiaco, FILOLOGIA NON PIÙ MORTA, I. Il filologo).
Nietzsche chegou a acreditar que nós temos de ultrapassar também os Gregos, mas os Gregos são inultrapassáveis, não ir ao seu encontro significa (para um Ocidental) não ir ao encontro de si próprio. O nosso mundo de hoje é incompreensível sem a técnica e a ciência, por exemplo. A técnica e a ciência, por sua vez, são incompreensíveis se não remontarmos até a fonte grega. «Apolo simboliza esse olho penetrante [do sábio, aquele que lança luz na obscuridade], o seu culto é uma celebração da sabedoria. Mas o fato que Delfos seja uma imagem unificante, uma abreviação da própria Grécia, indica algo mais, isto é, que o conhecimento foi, para os Gregos, o valor máximo da vida. Outros povos conheceram, exaltaram a adivinhação, mas nenhum povo a ergueu a símbolo decisivo, pelo qual, no grau mais elevado, a potência se exprime em conhecimento, tal como aconteceu com os Gregos» (Giorgio Colli, La nascita della filosofia, 1. La follia è la fonte della sapienza).
Assim, os três volumes d’A sabedoria grega, publicados no Brasil em 2012 e 2013 pela editora Paulus, com tradução do italiano para o português de Renato Ambrosio, são uma obra imprescindível, não só para helenistas, historiadores e estudantes ou professores de filosofia, mas para qualquer um que se interesse pelo nascimento do pensamento ocidental. O terceiro volume, que reúne os fragmentos de Heráclito, deixa escancaradamente à mostra (para qualquer um dotado de um mínimo de intelecto) que a filosofia, ao contrário dos que acreditam que os seus primeiros passos são passos de criança que ainda mal sabe andar, nasce grandiosa. Na realidade, os primeiro e segundo volumes já deixavam entrever essa grandeza.
Note-se desde logo que Colli não diz pré-socráticos, Colli fala de sabedoria. E acrescente-se com prontidão que esta obra de Colli não é exatamente um mero comentário (embora contenha comentários tão sucintos quanto preciosos). De que se trata então? Trata-se de uma recolha que se pretendia exaustiva (Colli morreu antes de levar a cabo a totalidade do projeto) das palavras que chegaram até nós vindas desde os tempos mais remotos da Grécia arcaica e que vieram a dar origem ao que veio a se chamar filosofia (a qual nem sempre soube recolher e custodiar essa herança). O seu valor, porém, não se atém a nenhuma pré-figuração ou a qualquer outra interpretação “evolucionista”. Pode-se e deve-se ler estes volumes em conjunto com a obra de Colli intitulada O nascimento da filosofia, o que permitirá atestar a coerência da obra do pensador italiano, mais conhecido como editor das obras de Nietzsche. Será, no entanto, suficiente folhear umas quantas páginas de Filosofia dell’espressione ou dos seu cadernos póstumos, La ragione errabonda, para nos apercebermos que estamos na presença de um dos maiores pensadores do século XX. De algum modo, as suas traduções faziam parte da sua obra (lembremos, entre outras, as magistrais traduções do Organon de Aristóteles e da Crítica da razão pura) e da possibilidade de exercer uma ação cultural.
Trata-se, pois, no original, de uma tradução do grego para o italiano de testemunhos anônimos em torno de Dioniso e Apolo, Elêusis e Orfeu, assim como das palavras dos primeiros sábios, Tales, Anaximandro, Anaxímenes, etc. A versão em português é então uma tradução de uma tradução? Sim. Com o texto grego ao lado para que se possa cotejar. Mas o primeiro pecado segundo as tábuas da lei da tradução não é traduzir uma tradução? É. Mas estamos diante dum caso tão extraordinário que, tal como aconteceu em francês e espanhol, decidiu-se traduzir as traduções de Colli para português e só podemos felicitar com uma vênia os responsáveis por essa decisão. Porquê? Porque as traduções de Colli abrem perspectivas inéditas e contribuem para uma mais profunda compreensão dos conceitos gregos. Só alguns exemplos: a tradução de lógos por expressão, de physis por nascimento, de harmonia por trama, de xynon por o que concatena, de phroneein por sentir a imediatez, de ethos por qualidade interior, etc.
Trazendo para nós à tona o pano de fundo, com sorte o leitor moderno talvez possa pressentir que o saber nem sempre foi letra morta, coisa exangue, erudição de sedentário, mas que houve na terra homens para os quais a insolência do conhecimento significou uma visão fremente da vida – aparição de un deus: «Dioniso é vida e morte, alegria e dor, êxtase e espasmo, benevolência e crueldade […] Ao contemplar Dioniso, o homem não consegue mais separar-se de si mesmo, como faz quando vê outros deuses: Dioniso é um deus que morre. Ao criá-lo, o homem foi impelido a exprimir a si mesmo, totalmente, e mais alguma coisa além de si mesmo. Dioniso não é um homem, é um animal e ao mesmo tempo um deus, manifestando assim os pontos terminais das oposições que o homem traz em si».
Eis o começo. Se Schopenhauer não entendeu que sem os Gregos, em filosofia, nem sequer se começa, com Giorgio Colli talvez se possa continuar. E a nós cabe-nos continuar.

