Por Augusto Darde
No carnaval de 2023, visitei São Paulo e encontrei, num passeio, o livro Black Bazar (2009), de Alain Mabanckou. Já conheço a obra dele há algum tempo, além de admirar muito suas falas em torno da literatura de língua francesa escrita por autores negros e autoras negras. A importância dele é tanta que, em 2016, foi convidado por Antoine Compagnon a ministrar aulas sobre literatura da África no Collège de France, ápice da carreira de qualquer intelectual na França.
Black Bazar é escrito em primeira pessoa, já que se trata do diário de Fessologue – algo como Bundólogo em português –, chamado assim pelos amigos de boemia pois, segundo sua filosofia, a psicologia de um ser humano pode ser lida na maneira como mexe a bunda. Jovem adulto de cerca de 30 anos, ele nos conta sua vida em Paris, retratada particularmente entre o bar afro-cubano Jip’s, que existe de verdade, localizado perto dos Halles, bem no ventre de Paris (parafraseando Zola) e o 18o arrondissement, mais especificamente as redondezas da estação de metrô Château-Rouge, onde se concentra uma população de imigrantes vindos de países africanos. Como Alain Mabanckou, Fessologue é nascido em Pointe-Noire, na República do Congo.
O que mais achei marcante em Black Bazar é que o livro revela, além de vozes diversas, locais de Paris pouco ou nunca representados em sua vasta presença na literatura, mais ou menos como fez José Falero em Vila Sapo (2019) e Os Supridores (2020) com relação a Porto Alegre, revelando uma capital gaúcha jamais vista antes nas rodas de conversa de feiras do livro e festas literárias prestigiosas. E é interessante, no entanto, notar que o 18o arrondissement e as ruas perto do metrô Château-Rouge já tinham aparecido em um grande romance do cânone: L’Assommoir (1876), de Zola, que explora as vidas na periferia parisiense no final do século XIX. Mas Black Bazar traz outro 18o arrondissement, mesma localização mas outro espaço, aquele que ainda não tinha aparecido na literatura – ao menos a partir de minha limitada leitura –, a parcela do 18o arrondissement enquanto “bairro africano” de Paris, do metrô Château-d’Eau também, do marché da rue Dejean, dos cortes de cabelo à la Jackson Five, dos “abraços intermináveis entre tábuas de peixe assado, de mangas, de goiabas ou de graviola. Gargalhadas, pisões sem o mínimo pedido de desculpas” (tradução minha), enfim, essa outra periferia, uma periferia pós-colonial, que traz em si as consequências da colonização francesa nos países do continente africano, da “diaspora noire” dos escritores da virada do século XX ao XXI, à qual o próprio autor Alain Mabanckou declara pertencer, essa geração “que, herdeira da fratura colonial, é marcada pelos estigmas de uma oposição frontal de culturas cujos cacos de vidro esmaltam os espaços entre as palavras” (tradução minha), como diz em uma de suas lições ministradas no Collège de France.
Além dos espaços, me chamou também atenção a maneira pela qual são representados: Fessologue é um escritor em formação, então ele não descreve os detalhes concretos como na tradição da prosa francesa, obcecada por cada textura, cada movimento lânguido de folha pendente em galho, cada mínimo alçar de sobrancelhas. Fessologue se concentra nas falas dos personagens. Em Black Bazar, a gente compreende os espaços a partir das vozes das pessoas que os habitam. Esse recurso de escrita me chamou tanto a atenção, que escrevi um artigo a respeito, publicado na revista Organon (UFRGS), v. 38, número 75 (2023), no qual aproximo o espaço de Fessologue do conceito de espaço de Milton Santos, geógrafo brasileiro, um de nossos mais importantes intelectuais e que propôs que o espaço não é um dado apenas concreto, mas sobretudo histórico e social.
Do carnaval até aqui, quase dezembro, posso dizer que Black Bazar foi, de longe, minha leitura mais relevante do ano. Fica a sugestão do livro, que tem edição em português, publicada no Brasil pela Malê Editora. E também a recomendação de acompanhar as reflexões de Alain Mabanckou, escritor e professor, dono de uma capacidade de síntese incrível, de um olhar atualizado e profundo sobre as questões mais importantes em torno da literatura de nosso tempo.

