‘A REVOLTA DAS VÍSCERAS’, DE MARILUCE MOURA

Por Luciana Coronel

No teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra
Michele Perrot

Mariluce Moura, jornalista bahiana, ficcionaliza em A revolta das vísceras (1982) sua experiência na resistência ao autoritarismo vigente durante a ditadura civil-militar (1964/1985). Trata-se de uma narrativa notavelmente bem construída, na qual a personagem Clara busca reunir os fragmentos da memória de violências sofridas para elaborar em chave simbólica os traumas, que são por definição interditos à palavra. Militante nos anos 1960/70 da organização Ação Popular Marxista-Leninista (APML), a autora compõe o romance por meio de uma enunciação distanciada, no interior da qual são inseridos estilhaços da voz da personagem, que relata em primeira pessoa a busca pela linguagem capaz de servir de ponte para atravessar o sofrimento que lhe paralisa. No presente da enunciação, Clara mobiliza esforços para escrever a “carta” destinada a alguém que não está e cuja falta lhe consome:

Queria, meu amor, poder falar de prisão, torturas e assassinatos e só posso falar como ecoaram em mim. Devo lhe falar do meu medo […] Queria que você entendesse como tremo diante da possibilidade de  estarmos já anestesiados diante de tanta violência, porque concluímos, meio distraídos, que o mundo em que estamos vivendo é assim mesmo. (Moura, 1982, p. 35-36)

É sabido que a autora passou pela experiência da prisão, tortura e também do desaparecimento do companheiro Gildo Macedo Lacerda, então dirigente da APML. Pode-se considerar que por meio da escrita literária, ela procure ao mesmo tempo alívio e justiça em relação a perdas irreparáveis que não são apenas suas, mas do conjunto da sociedade brasileira.

Tendo sido publicado na esteira de Em câmera lenta (1977), de Renato Tapajós, O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, e Os carbonários (1980), de Alfredo Sirkis, diferentemente dessas obras, que após os ventos da Anistia (1979) consagraram seus autores, também militantes de esquerda, o romance de Mariluce Moura permaneceu sob o veú do esquecimento até meados do século XXI. Possivelmente esse apagamento se deva ao fato de que a vocalização feminina, neste e na maioria dos casos, provoque uma cisão na tradição androcêntrica, oferecendo uma leitura alternativa da história que desafia a memória socialmente construída do passado:

Por que, eu me pergunto e agora lhe pergunto, uma tão grande vocação para o suicídio? Porque na nossa geração, a ação política se revestiu do caráter místico, messiânico, se embebeu da ideologia do sacrifício e da renúncia, que imprimia a fogo na cabeça de cada militante, a ideia de que tentar se manter vivo, tentar salvar a própria pele era quase sempre deserção? Traição? (Moura, 1982, p. 37)

E ainda:

Os companheiros? Ah, eles são sisudos, sérios, mal-amados, incapazes de se debruçar sobre seus verdadeiros pensamentos, incapazes de se entregar aos seus verdadeiros sentimentos. […]

Na reunião da célula lhe dão oportunidade de falar, explicar como está, se defender. Não há nenhuma defesa… não existe a confiança no partido… não sou marxista… tenho dúvidas sobre as análises de sociedade que vocês fazem, não aceito os princípios gerais, nem programa… porra nenhuma. (Moura, 1982, p. 53).

Trazendo, assim, o ponto de vista e as vivências de uma mulher que atuou no enfrentamento da violência de Estado durante os anos de chumbo, A revolta das vísceras merece a leitura de todos que se interessem por História, memória, política e gênero. Esgotada e apenas raramente disponível em sebos, a narrativa acaba de ser reeditada pela editora Aretê, da própria escritora. Lançada no Memorial da resistência, em São Paulo, simbolicamente em vinte e oito de outubro, dia em que completavam-se cinquenta anos do assassinato de Gildo Lacerda, a publicação agora intitula-se A revolta das vísceras e outros textos e passa a compor tardiamente o acervo de textos literários que oferecem ao leitor a chance de conhecer um pouco mais um passado que, permanecendo desconhecido, seguirá assombrando como fantasma a democracia brasileira. Vem em boa hora então a nova edição.

Leia mais da autora em Sepé.

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